Capítulo 2 — A Raiva que Me Mantém Viva

Capítulo 2 — A Raiva que Me Mantém Viva

Era só o meio da tarde, e juro por tudo que esse dia parecia ter acordado só pra me foder. Depois do sermão da Hella e da conversa com a Jessika, ainda tive que vir pra essa porra de padaria, fingir que tava tudo bem, que eu era uma funcionária exemplar. Empacotando pão, limpando balcão como uma idiota, sorrindo pra gente que me olhava como se eu fosse carne de segunda jogada no açougue.

O cheiro de pão velho grudava no meu cabelo, no meu casaco, na minha alma. Minhas mãos tavam todas vermelhas de tanto esfregar coisa. Contava moedinha como quem conta esperança. Spoiler: não tinha nenhuma.

A porta rangendo foi tudo o que eu precisei ouvir pra saber que o inferno tava entrando. Nem olhei — o salto fino, a postura empinada, o perfume forte e falso. Aquela mulher tinha o dom de me fazer querer quebrar alguma coisa.

— Olha só — ela cuspiu, do jeito mais escroto possível —, a vagabunda da casa da velha russa. Deve roubar o troco pra comprar cigarro.

Travei o maxilar. Um, dois, três… Tentei ignorar. Eu juro que tentei. Mas tem gente que força.

Ela se encostou no balcão e me analisou como se eu fosse um bicho nojento no canto da parede.

— Puta adolescente — falou com aquele sorrisinho seco que dava vontade de socar.

Realmente achei que o dia ia dar uma folguinha. Mas não, ele queria ver sangue.

E foi aí que estalou. Não sei o que foi. Só sei que minha mão pegou um dos pães mais duros da cesta e, antes que eu pensasse duas vezes, lancei bem na cara dela. O barulho abafado foi lindo. Aquela vaca nem teve tempo de reagir.

— Tá louca?! — ela gritou, segurando o rosto.

— Louca nada! — já tava por cima do balcão, os dedos fechando o casaco dela. — Quem provocou foi você, sua nojenta!

Tava entalada até o pescoço com aquela mulher. Toda vez que vinha aqui era a mesma merda. Hoje, então? Hoje não.

A confusão começou de vez quando o dono berrou:

— Viktoria! Solta ela agora! Tá demitida! Vaza!

Soltei, tremendo, a garganta ardendo de ódio.

— Não vou perder cliente por causa de lixo de periferia! — ele cuspiu como se fosse dono da moral.

Fiquei parada um segundo, sem acreditar que tava mesmo sendo chutada assim. Mas que surpresa, né? Nesse mundo de merda, tudo que importa é dinheiro. O resto que se foda.

— Ah, claro! O mais importante é essa dondoca de merda! — rosnei, e dei um passo pra frente. Ela recuou. — Você se acha tão melhor? Tem o quê, hein? Dinheiro? E daí?! Ainda mora nesse bairro fudido igual eu! Ridícula! Deve até usar roupa falsificada só pra se mostrar!

— Sua… — o dono resmungou e veio na minha direção.

Mas ele era um bunda mole. Eu sabia. E sinceramente? Que se exploda ele e essa vaca junto.

Meus joelhos estavam bambos, mas levantei o queixo. Joguei o último olhar de desprezo pra ela e saí. Vi que tremia. Raiva? Vergonha? Que se dane. Tanto faz.

Na rua, o frio bateu como tapa. Meu corpo tremia de raiva. Raiva deles. Raiva de mim. Raiva desse bairro que não deixava ninguém respirar.

Desci a rua com o vento cortando meu rosto, os punhos cerrados dentro do bolso. Cada passo era um aviso: eu tava prestes a explodir.

O cheiro de pão, o perfume da madame escrota… tudo grudado na minha pele. Me senti suja. Me senti fodida.

Odeio esse mundo. Odeio os ricos que cospem na nossa cara como se fosse normal. Odeio quem finge se importar. Odeio ter que aguentar calada. E, pior de tudo, odeio essa voz dentro de mim dizendo que talvez eles estejam certos. Que eu nunca vou sair dessa merda.

Passei pelos muros rachados, os fios pendurados, as lâmpadas queimadas. Esse bairro parecia rir da minha cara. Sempre falei que não ligava. Mentira. Dói pra caralho. E cansa.

Quando parei na frente da casa da Hella, fiquei uns segundos parada. A madeira da porta tava velha, descascando. A luz da sala vazava por baixo. Eu sabia que ela tava ali dentro. Sabia que ia me encher o saco assim que entrasse.

Fechei os olhos. Respirei fundo. Pensei em sair correndo. Sumir. Mas ir pra onde? Eu nunca tive pra onde ir.

Encostei a testa na porta, tentando segurar o mundo que girava dentro do meu peito. Era só mais uma merda pra aguentar. Só mais uma porrada pra engolir.

Mas alguma coisa dentro de mim mudava. Algo crescia. Uma raiva que já não era só raiva — era promessa.

Se esse mundo acha que vai me enterrar, vai precisar de uma pá maior.

Fiquei parada na porta, segurando a sacola toda amassada. Meus dedos estavam duros de frio, mas o que doía de verdade era por dentro. Tava tentando decidir como contar pra Hella. Que fui mandada embora. De novo.

Respirei fundo. Uma, duas, três vezes. Pensei em mentir. Mas a verdade ia sair de qualquer jeito.

Só que aí, quando fechei a porta atrás de mim… senti. O silêncio tava estranho. E então — um grito abafado. Um estalo. Um tapa.

Soltei a sacola. Ela bateu no chão e rolou, perdida. Dei uns passos devagar pelo corredor. A respiração tava presa. A garganta apertada.

A voz dele rasgou o ar:

— Puta inútil. Acha que pode me fazer esperar? Eu pago por isso. Eu pago por você.

Amanda tava ali. Cabeça baixa. Mão no rosto. O braço preso na mão de um cara de terno. Grande. Com cara de nojo.

Por um segundo, eu congelei. Meu cérebro berrava: sai daí. Não se mete. Já tá fodida.

Mas aí ele levantou a mão de novo.

E o mundo virou vermelho.

A raiva subiu rasgando tudo por dentro. Da mulher da padaria. Do dono. Do bairro. Do mundo. Do meu medo.

Dei um passo. Depois outro.

E juro por tudo que é mais sagrado: eu nunca odiei alguém tanto na minha vida como odiei aquele homem naquele instante.

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