CAPÍTULO 1.

📖 Capítulo 1 – Chegada ao Morro

O céu estava encoberto por nuvens pesadas quando Melissa Martins desceu do ônibus lotado em frente à entrada do Vidigal. Carregava nas mãos as duas únicas malas que conseguiu trazer de Botafogo, junto da filha que caminhavam abraçadas e assustadas com a movimentação intensa na rua. A mudança tinha sido repentina, forçada, desesperada. Mas ela não teve outra escolha: depois de cinco meses sem receber respostas de entrevistas, com as contas empilhando como tijolos na porta, a pensão que recebia do falecido marido não pagava mais nem metade das despesas.

Melissa respirou fundo, olhando para cima, onde o morro se erguia imenso, com suas vielas serpenteando como veias de concreto. Cada beco parecia ter olhos que a observavam, julgando, medindo, testando. O coração dela batia forte, mas não era medo que sentia: era determinação. Já havia enfrentado humilhações demais para permitir que qualquer coisa a derrubasse agora.

— Vamos, meu amor — disse, com a voz suave, mas firme. Alice, a mais velha, segurava a mão dela com força.

Foi então que Dona Celeste, uma senhora de quase sessenta anos, moradora antiga do Vidigal, apareceu no alto da ladeira. Ela acenou para Melissa com um sorriso acolhedor. — Você deve ser a moça que conversei pelo telefone, não é? — perguntou, ajudando-a com as malas. — Aqui ninguém passa fome se eu puder ajudar. Ainda mais quando dona Marlene indica.

Melissa sentiu o coração aquecer. Em meio a tanta incerteza, encontrar alguém disposto a estender a mão era como enxergar um raio de sol em meio à tempestade.

A casa que Dona Celeste havia conseguido para ela ficava num canto mais alto, quase no topo do morro. O barraco de dois quartos era simples, feito de alvenaria improvisada, mas tinha chão limpo, pintura descascada apenas em alguns pontos e janelas que deixavam entrar o ar fresco do mar. Para quem não ganhava nem um salário mínimo, era um verdadeiro castelo.

Enquanto subiam as escadas íngremes, Melissa sentia o peso do passado em cada passo. As lembranças do marido, um homem com quem tinha vivido anos de brigas, traições e noites frias, se misturavam à tristeza que ainda carregava. Mesmo separados antes dele morrer, ela jamais deixaria que sua filha ouvisse uma palavra ruim sobre o pai — ensinou- ela a amá-lo, mesmo em silêncio.

Ao entrar na casa, Alice correu para explorar cada canto, Melissa pousou as malas no canto da sala e fechou a porta atrás de si. Olhou em volta. O lugar precisava de cuidados, mas era delas. Pela primeira vez em meses, sentiu-se protegida, mesmo que em meio ao caos.

Naquela noite, depois de preparar arroz com ovos mexidos, elas

se sentaram no chão em cima de um lençol estendido como toalha. Comiam rindo entre um gole de suco e outro, a luz fraca da única lâmpada balançando com o vento que entrava pela fresta da janela. Melissa enxugava discretamente as lágrimas que insistiam em escapar, enquanto admirava o rostinho sorridente da filha. Aquela pequena momentos de felicidade a lembravam que a gratidão era mais poderosa que qualquer reclamação.

No dia seguinte, acordou antes do sol nascer. Enquanto a sua princesa ainda dormia, arrumou a casa, lavou o pouco de roupa que tinha trazido, varreu a frente do barraco e organizou as gavetas improvisadas com caixas de papelão. Depois vestiu uma calça jeans surrada, camiseta branca e prendeu o cabelo em um coque apertado. Precisava começar a procurar emprego, de novo.

Enquanto caminhava morro abaixo, sentia todos os olhares sobre ela. Alguns curiosos, outros maliciosos, mas muitos indiferentes, acostumados com rostos novos que vinham e iam com a mesma rapidez. Nos becos, crianças corriam descalças, vendedores ambulantes gritavam as promoções do dia, enquanto os sons de tiros distantes ecoavam como trovões abafados — um lembrete cruel de onde estava.

Melissa encontrou o posto de saúde local, uma construção de paredes verde-claras descascadas, com cheiro constante de desinfetante e mofo. Foi recebida pela recepcionista, uma mulher alta, magra, de expressão dura, que olhou de cima abaixo antes de perguntar: — Veio se consultar?

— Na verdade, vim saber se precisam de técnica de enfermagem — respondeu, erguendo o queixo. — Sou formada, tenho experiência e estou disponível.

A recepcionista arqueou uma sobrancelha, pegou um papel amassado em cima da mesa e entregou. — Preencha isso e aguarde. Se tiver vaga, vão te chamar.

Melissa sentou-se em um dos bancos de metal enferrujado do corredor, olhando as pessoas que entravam: mães com crianças febris, idosos cansados, jovens feridos por brigas de rua. Aquela realidade era dura, mas ela sentia que, de algum modo, ali poderia fazer a diferença.

Enquanto aguardava, não deixava de pensar nos filhos sozinhos em casa. Mas sabia que precisava agir. Não podia se dar ao luxo de desistir. A lembrança de cada humilhação que já sofrera a mantinha firme. Quando finalmente a chamaram, entregou os documentos e foi informada de que ligariam assim que houvesse vaga.

No caminho de volta, ouviu boatos sobre o “terrorista do morro”, o homem que comandava tudo dali. Comentavam que ele era jovem, bonito, mas cruel, que tinha perdido os movimentos das pernas após um acidente e que ninguém ousava sequer olhar nos olhos dele. Cada história parecia mais exagerada que a anterior, mas todas terminavam da mesma forma: com o terror que o nome dele causava.

Melissa sacudiu a cabeça. Não tinha tempo para medos. Precisava de um trabalho. Precisava alimentar os filhos. E precisava continuar de pé.

Ao chegar em casa, foi recebida com abraço caloroso. Alice mostrava os desenhos que havia feito. Juntas, arrumaram a casa um pouco mais, improvisaram cortinas com lençóis velhos, organizaram a pequena cozinha e colocaram música para tocar em um celular com caixa de som surrada.

À noite, depois do banho, deitaram toda juntas no mesmo colchão grande, abraçadas. Melissa contou histórias sobre princesas guerreiras e heróis corajosos, mas no fundo desejava que ela soubesse que a verdadeira força estava ali, naquele abraço apertado, na união que as fazia seguir em frente mesmo quando tudo parecia ruir.

Naquela madrugada, enquanto todos dormiam, Melissa ficou olhando o teto escuro, sentindo a brisa do mar que chegava pela janela. Apesar do medo do desconhecido, apesar da violência que rondava cada beco, sentia que, pela primeira vez em muito tempo, poderia encontrar ali não apenas a chance de sobreviver — mas quem sabe, até de recomeçar.

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Comments

Leitora compulsiva

Leitora compulsiva

tô vendo ela sendo enfermeira do chefiou rsrrsrs

2025-07-07

0

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