A batida na janela se repetiu. Amandinha estava ali, um convite e uma tentação em seu sorriso. Suellen sentiu o dilema rasgá-la por dentro: o simulado de biologia a esperava na manhã seguinte, o peso das expectativas da mãe, o sonho da medicina. Mas e a carência? Aquele desejo quase infantil de ser vista, de pertencer a algo que não fosse só esforço e privação. “Se eu for… talvez ele me veja. Talvez alguém me veja. Talvez eu deixe de ser ninguém. Mas e se eu não voltar a ser eu?” O pensamento era um abismo.
Amandinha, sem esperar resposta, entrou no quarto apertado de Suellen. Ela não era uma amiga, era uma força da natureza. Trazia uma sacola plástica, quase como uma fada-madrinha do morro, mas com uma aura duvidosa. "Anda, Su! Que essa cara de defunto não vai atrair ninguém." De dentro da sacola, Amandinha tirou um arsenal: maquiagem, uma blusa de cropped preta e decotada, uma calça justa que marcava cada curva, e um salto emprestado que Amandinha dizia que a faria "arrasar".
A transformação começou. Amandinha, com um prazer quase sádico, fez da Suellen uma tela. Puxou os cachos crespos de Suellen para cima, prendendo-os num coque alto, liberando o rosto. Depois, veio o batom forte, um vermelho cereja que Suellen jamais ousaria usar. O delineador gatinho alongou os olhos castanhos, e um gloss com glitter finalizou o show. Suellen se sentiu como uma boneca sendo montada.
"Veste isso!", Amandinha ordenou, jogando as peças de roupa. Suellen pegou o tecido colante. Era desconfortável, estranho ao seu corpo acostumado a uniformes e roupas largas. Mas, por um segundo, ao se olhar no espelho rachado, sentiu algo. Uma faísca de poder. Uma versão "morro glam" de si mesma, irreconhecível. E, para sua surpresa, ela gostou. “Eu não sou eu… Mas talvez eu precise deixar de ser eu pra sair daqui.”
Amandinha sorriu, aquele sorriso calculista. "Tô indo sem calcinha. Tu também vai, né? Senão vai parecer amadora." A frase de Amandinha foi um golpe, um empurrão psicológico direto. Suellen congelou. Aquilo era demais, cruzava uma linha invisível. Mas a imagem de Amandinha, tão livre, tão desimpedida, assaltou sua mente. “Amandinha é tudo o que eu não sou... Mas hoje, só por hoje, eu queria ser ela.”
Suellen balbuciou algo, mas Amandinha já estava com a maquiagem pronta, aplicando um último toque de pó no rosto de Suellen. O silêncio de Suellen era um "sim" em potencial. Amandinha sabia que Suellen queria ser aceita. E usava isso para afundá-la, para puxá-la para o seu buraco.
A ausência da mãe, Dona Marta, foi um fator silencioso, mas determinante. Ela já havia saído para sua rota de latinhas, provavelmente a essa hora já se curvando sobre o lixo de gente que tinha tudo. Suellen viu o bilhete na geladeira, a letra tremida: "Não esquece do simulado. Te amo." A frase bateu estranho. Raramente ouvia um "te amo" direto da mãe, tão focado em sobreviver. Mas Suellen ignorou. A mãe não estava ali para impedir. E essa ausência abriu o espaço emocional para Amandinha dominar tudo.
A festa no Morro do Farol era um turbilhão para os sentidos. No terraço de uma das casas mais altas, a música alta fazia as paredes de concreto pichadas vibrarem. Luzes coloridas de LED piscavam em ritmo frenético, criando uma atmosfera alucinógena. O cheiro forte e doce de maconha se misturava ao suor e ao perfume barato. Casais dançavam colados, corpos roçando uns nos outros, num ritmo que era quase tribal. Bebidas em copos grandes passavam de mão em mão, e, para o horror velado de Suellen, armas estavam à mostra na cintura de alguns caras, penduradas como adornos. Os "donos do pedaço" – homens musculosos, tatuados, com correntes de ouro – se posicionavam como reis em tronos de plástico, observando seu domínio.
Amandinha parecia nascer para aquele lugar. Ela se movia na pista de dança como se o mundo fosse dela, cada curva do corpo uma provocação, cada movimento uma afirmação. Conhecia o terreno. Suellen, por outro lado, observava tudo com os olhos arregalados, a garganta seca. Cada canto parecia esconder um perigo, uma ameaça. Mas ela forçava um sorriso, fingindo confiança, tentando se misturar.
“Eles tão olhando pra mim. Eu deveria fugir. Mas... talvez, eu goste. Goste de ser olhada.” Aquele pensamento era novo, perturbador. “Talvez eu nunca mais tenha essa chance.” O mundo que ela sempre rejeitou a estava engolindo. “Talvez eu precise ser desejada pra me sentir viva.”
Enquanto Suellen tentava assimilar o caos ao seu redor, Amandinha, no meio da pista, com um sorriso satisfeito, pensava: “Betão disse que era pra levar uma virgem. Uma novinha, do tipo que ele nunca pegou.” Ela olhou para Suellen, que tentava disfarçar o nervosismo. “E a Suellen caiu certinho. Só precisei trazer a roupinha, o gloss... e ela se entregou sozinha.” Um riso abafado escapou de seus lábios. “Ela acha que isso aqui é sobre amizade. Tadinha.” A maldade de Amandinha era fria, calculada. “Depois que o Henrique provar, quero ver ela voltar pro cursinho de cabeça erguida.”
Henrique ainda não tinha aparecido. Mas Betão, um dos caras mais próximos do chefe, já estava de olho em Suellen, os olhos escuros percorrendo cada centímetro dela. Amandinha, percebendo o olhar, fez um gesto sutil, entregando Suellen com os olhos.
Alguém colocou um copo grande na mão de Suellen. A bebida tinha um cheiro adocicado e forte. Ela hesitou por um segundo, o copo tremendo ligeiramente. Mas a música pulsava, a adrenalina corria, e o desejo de pertencimento a empurrava. Ela sorriu, um sorriso que não era dela, e tomou um gole grande.
A música aumentou, um grave pesado vibrando no peito de Suellen. De repente, uma mão desconhecida e pesada segurou sua cintura por trás.
Ela sorriu – sem saber que, naquele instante, estava sendo empurrada do alto de um abismo.
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Atualizado até capítulo 34
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