Suellen: Entregue ao Chefe do Morro
Olá Leitores apresento a vocês os personagens na primeira fase da história:
Suellen:
Amandinha:
Henrique:
Dona Marta:
Diego:
O morro do Farol acordava em um caos familiar. Do barulho abafado do funk que vazava de algum beco, aos gritos apressados de mães chamando os filhos para a rua. O ranger de motos subindo e descendo as vielas, com o som estourado ecoando nas paredes de concreto, era a trilha sonora constante. O ar carregava um misto de cheiros: sabão de coco, feijão cozinhando, e o inconfundível odor doce-azedo do lixo reciclável que se acumulava em alguns cantos.
Suellen se remexeu na colchonete estendida no chão do pequeno quarto. O cabelo crespo, amarrado no alto da cabeça para a noite, já estava desalinhado. Seus olhos castanhos, geralmente firmes, estavam pesados de sono, mas a mente já trabalhava. Ao fundo, o som abafado do ventilador não conseguia esconder a tosse seca de sua mãe. Era um som que Suellen conhecia bem, um presságio.
Vestiu o uniforme escolar remendado no cotovelo, calçou o tênis falsificado que já via dias melhores. Um toque discreto de gloss nos lábios, e pronto. Pegou o caderno com as anotações de biologia – seu refúgio, sua promessa. Ao passar pela mãe, que já estava de pé na cozinha, Suellen sentiu o peso da preocupação. Dona Marta estava pálida, os lábios finos e secos, mas forçou um sorriso cansado. "É só uma gripe passageira, minha filha. Vá estudar. Vai dar tudo certo."
Suellen assentiu, mas seu olhar perspicaz notou a transpiração fina na testa da mãe e a respiração arrastada. Ela já vira a mãe esconder a dor antes. E isso, de alguma forma, a assustava mais do que qualquer tiro que pudesse estourar nos becos do morro.
No caminho para a escola, Suellen tentava revisar as leis de Mendel em sua mente, mas a voz insistente de sua consciência era mais alta: “Amandinha tem tudo: unha feita, roupa de marca, até um celular decente. E ainda quer se vender. Enquanto eu tô aqui, contando moedinha do busão, tentando ser ‘digna’. Dignidade não enche a barriga, né?”
A escola era um caldeirão de barulho e despreocupação juvenil. Risadas altas, flertes descarados, o último hit de funk saindo de celulares escondidos. Suellen sentou-se na frente, abrindo o livro de ciências, fingindo foco. O contraste era gritante.
Então, Amandinha chegou. Não entrava, invadia. Maquiada às sete da manhã, com cílios postiços tão grandes que pareciam borboletas, um cropped minúsculo e calça de lycra que não deixava nada para a imaginação. O perfume doce, sufocante, denunciava sua presença antes mesmo que ela surgisse. Amandinha falava alto, segurava um celular com capinha cheia de brilho, atraindo olhares de admiração e reprovação.
Suellen a observou, um nó no estômago. “Ela parece tão livre. Mas sei que por trás desse cílio postiço tem um desespero que ela finge que não sente.”
Amandinha notou o olhar de Suellen e sorriu, um sorriso calculista. "Su, tu tem corpo pra ganhar grana, sabia? Se veste direitinho, vai num rolezinho… pá! Patrão na tua mão."
Suellen revirou os olhos, o tom sério. "Se é pra ter homem na mão, que seja pra tirar sangue na emergência. Não pra ficar te dando presente em troca de sexo."
"Tá me julgando?" Amandinha perguntou, a voz subitamente fria.
"Tô te tentando salvar."
Amandinha soltou uma risada debochada. "E quem disse que eu quero ser salva?" A conversa terminou ali, um abismo entre as duas que a amizade mal conseguia disfarçar.
De volta em casa, depois do cursinho comunitário onde a esperança se misturava ao cheiro de mofo, Suellen encontrou Dona Marta novamente no chão da cozinha, os olhos fixos na pilha de latinhas, as mãos sujas de pó. A mãe escondia a respiração pesada e a testa suada. "Vai estudar, minha filha. Deixa essa bagunça pra mim." A frase era um comando suave, mas Suellen ouviu a dor por trás. "Mãe tossindo sangue e ainda quer esconder que tá mal. Como se eu não soubesse quando ela tá morrendo por dentro."
A mente de Suellen voltou ao passado, às noites em que a mãe, com a voz embargada, contava sua história. Ela era manicure na casa de uma mulher rica, elegante, da alta sociedade. Lá, conheceu o marido da patroa, um homem bonito, educado, rico – o Procurador-Geral de Justiça. Dona Marta, jovem e inocente, se entregou a ele, caindo na armadilha de um amor que nunca existiu. Quando descobriu a gravidez, fugiu, temendo a ira da mulher poderosa. E a ira veio. A esposa do procurador descobriu a verdade e acabou com a vida dela. Fez com que perdesse todos os clientes, espalhou mentiras que destruíram sua reputação. Sem emprego, com uma barriga crescendo e o medo de perder Suellen para a "justiça" cruel da sociedade, Dona Marta se refugiou no morro. Ali, a vida era dura, mas ela estava segura. E sozinha.
A história se repetia na mente de Suellen, uma ferida aberta. “Meu pai é um covarde engravatado. E minha mãe, uma guerreira que perdeu a guerra, mas me ensinou a lutar mesmo assim.”
No final da tarde, Suellen viu Amandinha passar, desfilando um vestido novo, estampado e chamativo. "Ganhei de um cliente", Amandinha disse, piscando, e brincou: "Dinheiro honesto é lento demais." Suellen observou a amiga com um misto de desgosto e uma pontada de algo que não queria admitir: inveja.
“Ela não presta contas a ninguém. Não tem mãe tossindo sangue em casa. Tem uma avó que passa pano pra tudo. Se eu fosse ela... talvez tivesse me vendido também.” Aquele pensamento a assustou. Era a voz da tentação, do caminho fácil.
Mas então, outro pensamento veio, mais forte. “Mas o que ela não entende é que mesmo com roupa colada e salto alto, ela me inveja. Porque eu ainda tenho o que ela já perdeu: o olhar limpo. E ela quer me sujar.” O orgulho ferido de Suellen se ergueu.
A noite chegou, e Suellen, de volta do McDonald's, sentia o cheiro de fritura impregnado na pele. Tomou um banho gelado, tentando lavar o cansaço do corpo e da alma. Olhou para a mãe, que dormia profundamente, a respiração ofegante preenchendo o silêncio. Sentou-se com o caderno de anatomia aberto, mas as palavras se misturavam, o cansaço e a preocupação roubando sua concentração.
Uma voz, um sussurro da sua consciência, surgiu no silêncio do quarto: “E se for a última noite da minha mãe?” “E se eu morrer sem ter vivido?”
Então, uma batida suave na janela. Suellen ergueu a cabeça. Lá estava Amandinha, linda, maquiada, com um sorriso que não alcançava os olhos, envolta em um vestido justo que cintilava na escuridão.
"Su, bora", Amandinha sussurrou, chamando.
"Pra onde?" A voz de Suellen saiu rouca.
"Festa no Farol. Na casa do Henrique." Amandinha a encarou, seus olhos um misto de desafio e convite perigoso.
"Henrique?" Suellen sentiu um frio na espinha, o nome carregado de uma reputação sombria.
"Filho do dono do morro, né? Disse que quer te ver. Te viu na minha foto." O sorriso de Amandinha se alargou, vitorioso, como quem oferece veneno num copo de ouro. “Ela não quer me levar pra curtir. Ela quer me arrastar pro buraco junto com ela. Quer ver se eu sou de verdade, ou só mais uma iludida com diploma e pobreza.”
Suellen hesitou, a respiração presa na garganta. Amandinha sorria, esperando, saboreando a indecisão da amiga.
"Bora, Su. Só hoje."
Os pensamentos de Suellen eram um turbilhão. “Amandinha quer me ver cair. E talvez eu queira cair um pouco também. Só pra saber se dói tanto quanto parece. Só pra deixar de ser essa ‘boa menina’ que ninguém escolhe.” O olhar dela se fixou na janela aberta, no escuro do morro. “Se eu for... talvez nunca volte a ser quem sou.”
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 34
Comments