CAPÍTULO 2.

O silêncio da noite em Nápoles era enganador. A cidade dormia, mas o submundo — aquele que jamais fechava os olhos — respirava através das ruelas mal iluminadas, dos porões abafados, das vozes abafadas em rádios codificados.

Ali, entre sombras e poder, reinava Vicent Rocco.

Não por herança.

Não por sangue.

Mas por merecimento.

Ninguém conhecia a dor que moldou o novo Don da 'Ndrangheta. Ninguém ousava perguntar o que havia por trás dos olhos frios, dos braços cobertos por tatuagens negras que escondiam cicatrizes antigas, nem das mãos que pareciam sempre carregadas de decisões pesadas — sentenças de vida ou morte.

Vicent não era filho de mafioso.

Ele não era ninguém.

Foi deixado como um lixo humano na porta de um orfanato público, numa manhã de janeiro tão fria quanto os olhos da diretora da instituição. Cresceu ali como crescem as ervas daninhas: à margem, pisado, ignorado, silenciado. Sofreu abusos que o tempo não apagou. Seu corpo era mapa de violência. Cada cicatriz escondida sob tinta escura contava uma história que ele jamais repetia.

Aos quatorze, decidiu que não morreria naquelas paredes fedorentas.

Fugiu.

Ensanguentado, nu, com a pele marcada pelas torturas que se recusava a nomear. Foi na rua, entre os becos e o asfalto molhado, que conheceu Marco, então braço direito do poderoso Don Bianchi. Marco não fez perguntas. Reconheceu algo em Vicent — a mesma fome que tinha quando fora encontrado anos antes.

Levou o garoto para um lugar que não existia nos mapas: a Scuola dell'Ombra, a escola dos soldados.

Ali, Vicent reaprendeu tudo. Como andar. Como comer. Como pensar. Como matar.

Anos depois, era o melhor entre os recrutas. Forte, ágil, frio e metódico. Nunca se permitia falhas. Nunca criava laços. Obediência. Lealdade. Punição. Recompensa. As palavras formavam seu novo alfabeto.

Foi Dante Bianchi, o lendário Diablo, quem viu nele algo além de um executor. Dante não precisava de mais um cão de guerra.

Vicent nunca soube que um dia se tornearia o capô da máfia.

Cada missão. Cada morte. Cada decisão que executava sem hesitar, tudo fazia parte de um plano maior. Até que, com a queda do antigo império Bianchi e o exílio de Dante, a família precisou de um novo líder.

E foi Vicent quem herdou o trono.

Não o trono dourado dos contos de fada.

Mas um trono de ferro, forjado com sangue, medo e códigos milenares.

Don Rocco.

Era assim que o chamavam agora. E ninguém ousava contrariá-lo.

Sentado em seu escritório no último andar do Palazzo della Notte, um edifício disfarçado de casa noturna e sede de negócios legais, Vicent encarava os relatórios diários. As boates — especialmente a Rapture, sua joia milionária — estavam rendendo mais do que nunca. Os lucros com armas e drogas sintéticas circulavam silenciosamente pela Europa, e ele possuía espiões dentro da Interpol e da própria polícia italiana.

Aos 34 anos, Vicent era o homem mais temido do sul do país. E talvez, o mais solitário.

Seu escritório era escuro, decorado com madeiras nobres, couro preto e obras de arte contemporâneas com tons de vermelho e cinza. A janela de vidro espelhado dava vista para toda a cidade. Ao lado de sua mesa, um bar discreto com bourbon, conhaque e vodca gelada.

Ele bebia pouco.

Dormia menos ainda.

O telefone tocou com um som abafado.

— Don Rocco. — Era Leonardo, um dos gerentes de segurança. — A garota foi localizada. A filha do senador está na boate esta noite.

Vicent esfregou o maxilar, pensativo. Era sempre assim: protegidos que se sentiam imortais debaixo das luzes e bebidas.

— Cuidem para que ninguém chegue perto. Mas não toquem nela. Ainda. — disse ele, seco. — E me mandem a lista dos convidados da área VIP.

— Sim, senhor.

Quando desligou, seus olhos recaíram sobre a pasta aberta à sua frente. Ali estavam os registros de movimentações da semana. Uma quantia alta em diamantes chegaria na sexta, vinda de Antuérpia. Ele mesmo supervisionaria o carregamento.

Mas não era isso que tirava o sono dele.

Vicent dormia pouco não pelos perigos do cargo… mas pelos pesadelos.

Sonhava com gritos abafados. Com o cheiro de mofo e ferro queimado. Com a risada da diretora do orfanato enquanto ele era espancado por se recusar a obedecer suas ordens doentias. Sonhava com o porão. Com o cinto. Com o som do gelo caindo no balde.

Acordava molhado de suor. Duro. Furioso. E sozinho.

Desde que se tornara Don, nunca mais permitiu uma mulher em sua cama por mais de uma noite. Seus encontros eram em motéis de luxo, pagos em dinheiro, com mulheres que sabiam exatamente o que ele queria: submissão, silêncio e prazer sem alma.

Nenhuma delas ousava perguntar sobre as cicatrizes.

Nenhuma se atrevia a olhar nos olhos dele por muito tempo.

Vicent não confiava em ninguém.

Nem mesmo em si.

Por isso liderava com mão de ferro. Por isso fazia questão de manter o controle sobre tudo: sua máfia, seus homens, seus lucros… e sobre si mesmo.

Só que havia uma inquietação nos últimos dias. Um pressentimento.

Ele não era dado a crendices, mas seus instintos nunca falhavam. Sentia que algo estava prestes a mudar. E ele não sabia ainda se era sorte… ou maldição.

Seu olhar foi até o cofre embutido na parede atrás da estante.

Lá dentro, guardava três coisas: uma carta antiga que Dante lhe deixou ao passar o comando… uma foto antiga dos dois juntos em uma missão… e um pequeno crucifixo de prata que Marco certa vez lhe dera, dizendo que nem todo monstro era esquecido por Deus.

Vicent não era religioso.

Mas às vezes, nos momentos mais escuros, ele rezava.

Rezava não para ser salvo.

Mas para não voltar a ser o menino do porão.

Ele se levantou, pegou o casaco de couro, e desceu até a garagem onde seu carro o aguardava. Tinha uma boate para inspecionar. E sabia que esta noite… algo aconteceria.

Ele sentia.

E Vicent Rocco, Don da máfia… nunca errava.

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Comments

Celia Teotônio

Celia Teotônio

já estou gostando autora, senti sua evolução e estou amando!
parabéns 👏👏👏

2025-06-28

1

Vanildo Campos

Vanildo Campos

🫣🫣🫣🫣🫣🫣🫣🫣

2025-06-27

1

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