O ar era denso.
Tinha gosto de pedra antiga e fumaça de ossos.
Respirar ali era como beber sombra.
Minha cabeça latejava.
Cada pensamento era como um prego empurrado com calma para dentro do crânio.
Tentei me mover.
Correntes.
Runas queimando sob minha pele.
Tentei invocar a luz, senti o antigo poder subir da barriga para o peito, e então estancar, como se engasgado. Preso.
Frustração. Desespero.
— Por que não funciona…? — me questionei sem lembrar de muita coisa, tudo estava muito confuso.
Minhas mãos se ergueram, trêmulas. A magia... Não respondia.
Foi então que ouvi.
A voz.
Baixa. Rouca. Quente como óleo em pedra gelada.
— Você pode tentar, Alaris. Mas as cordas… foram feitas para calar até os deuses.
Meus olhos se ergueram, e então o vi.
Kaelhar.
Encostado no trono de galhos e pedras negras como se aquilo fosse sua casa — e talvez fosse.
Estava vestido em preto.
Mas era o corpo dele que traía o monstro.
Fortes. Definidos. Cada músculo parecia esculpido com propósito.
O pescoço largo. Os ombros largos.
Só usava uma calça, o corpo era perfeito, mas ele tinha algo diferente, uma asa negra e uma tatuagem quase poética.
“Foco, Alaris.”
Mas meu olhar não obedeceu de imediato.
Me amaldiçoei por isso.
Como posso… notar isso?
Como posso sentir isso… sendo ele?
Sacudi a cabeça.
— Solte-me — rosnei, o tom baixo, carregado de raiva. — Solte-me agora.
Ele deu um passo à frente.
Não rápido. Não agressivo.
Mas tão seguro, tão perfeitamente consciente do próprio poder que era quase insulto.
— Você é tão bonita quando tenta fingir controle.
Mordi a língua.
A raiva subiu como uma maré. Quente. Furiosa.
— Eu sou o controle.
Ele sorriu.
— Não aqui.
— Falar isso comigo presa é fácil, me solte e veremos quem tem poder. — falei tentando tocar algo humano dentro dele.
— Aqui, Alaris… você é só minha convidada. E essas cordas? São só cortesia para que não destrua o teto com seu orgulho.
— Convidado? Que bela forma de tratar um. — falei apontando com o queixo para a amarra em meus pulsos.
Ele se aproximou e tentou me tocar, mas não deixaria, não me deixaria levar pelo canto maldito que me trouxe aqui.
— Temos tempo, pode se desvencilhar o quanto quiser, mas aqui o comando é meu. — ele falou sempre usando aquele ar de quem era superior, e isso me fazia jurar que arrancaria sua cabeça.
Meu peito subia e descia. A corrente rangia quando tentei me levantar, mas ela segurava como ferro vivo.
“Ferren…”
“Pai…”
“Mãe…”
Mas nada vinha.
Só ele.
Kaelhar.
E aquela maldita voz que soava como um segredo que eu nunca deveria ter escutado.
Os passos dele voltaram minutos depois. Ou horas.
O tempo ali… era outro.
As correntes marcavam meus pulsos. Meus braços doíam. A garganta queimava.
Ele surgiu pela lateral da caverna com uma tigela de pedra nas mãos.
Água.
Cristalina, calma. Quase irônica, vinda de alguém que transbordava caos.
Kaelhar se ajoelhou diante de mim.
Segurava a tigela como se fosse um presente, ou uma armadilha.
— Beba.
Não era um pedido.
Não era uma ordem.
Era um teste.
Inclinei o rosto, desconfiada.
— Por quê?
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Porque precisa. E porque não morro de sede para provar meu ponto.
A tigela se aproximou da minha boca.
Eu deveria ter cuspido.
Deveria ter virado o rosto.
Mas bebi.
A água era fria.
Pura.
E, de algum modo, me expôs ainda mais. Como se minha fraqueza fosse agora visível entre nós.
Mas eu mantive os olhos nele.
Firmes.
Desafiadores.
Os dele… eram abismos.
E ali, entre o brilho cruel e o silêncio denso, eu vi.
Maegor.
A sombra atrás do filho.
O monstro nas correntes da alma dele.
Estava lá. Observando.
Esperando.
Quando Kaelhar se afastou, deixando a tigela no chão, deixei escapar:
— Maegor ainda não exigiu minha morte?
Ele parou.
Virou-se devagar, olhos semicerrados.
Por um instante, quase achei que responderia com fúria. Mas ele apenas sorriu, e aquele sorriso me deu mais medo do que qualquer grito.
— Ele exige muitas coisas. — falou como se aquilo não fosse nada de mais — Mas eu… escolho o que vale ser atendido.
Sua voz era uma navalha coberta de seda.
Assim que ele se afastou, fechei os olhos.
Foco.
Respiração baixa.
“Se Maegor está na mente dele… há uma ponte.”
Arriscado. Estúpido.
Mas eu sempre fui teimosa.
Minha mente, mesmo acorrentada, ainda era um labirinto.
E em silêncio, com a respiração desacelerada e o espírito em alerta, tentei o impossível:
Invadir a cela mental de Maegor.
Sentir onde ele estava preso dentro de Kaelhar.
Aquela sombra viva que comandava demais, mesmo atrás das grades.
Atravessar a mente de alguém tomado por uma entidade como aquela era o mesmo que caminhar sobre cacos afiados.
Mas eu precisava saber. Precisava ver o que ele era. O que Kaelhar escondia.
E talvez… como salvá-lo de si mesmo.
Se é que ainda existe salvação.
Foi como mergulhar em um abismo de espelhos estilhaçados.
O ar era espesso, morno. Umidade sussurrava entre as árvores retorcidas que margeavam o lago imóvel.
Nenhum som de vento. Nenhum canto.
Apenas o silêncio antes do grito.
E no centro… ele.
Kaelhar.
Sentado na beira do lago, as pernas dobradas, as mãos apoiadas atrás do corpo.
Parecia um menino solitário diante do reflexo.
Mas não era o reflexo que ele olhava.
Era ele.
Maegor.
Preso numa cadeira feita de ossos retorcidos acima das águas — como se o lago o mantivesse em suspensão, ou servisse de espelho à prisão.
Correntes negras envolviam seus braços e pés.
Mesmo preso, ele gritava.
— IMBECIL! — a voz de Maegor retumbou como trovão preso numa caverna.
— Você brinca com ela, mas ela é o fim! Ela é o elo!
Kaelhar não reagiu.
Ainda sentado, ainda calmo.
Mas eu, escondida entre as árvores mentais daquela dimensão, congelei.
O medo me encontrou ali.
Como se, de repente, eu fosse só uma criança num bosque sem nome.
Respirei fundo. Dei um passo para trás.
Um galho estalou sob meu pé.
Ele virou.
Kaelhar me viu, Maegor também.
— Alaris… — disse, com a calma que antecede a carnificina.
Ele se levantou, e o lago respondeu com ondas negras.
— Você veio ver o que não devia.
Meu coração trovejava no peito.
Virei, corri entre as sombras. O bosque dentro dele era vivo, e me agarrava. As árvores tinham olhos. O chão tentava me prender.
Eu não conseguia fugir.
Ele estava me caçando dentro da própria mente.
— Você achou mesmo que poderia se esconder de mim… dentro de mim?
Sua voz era um eco, vindo de todas as direções.
Girei para trás.
Ele estava lá.
Não corria.
Andava.
Como se tivesse todo o tempo do mundo.
Como se cada batida do meu coração fosse uma batida do tambor da guerra.
— Acha que me conhece, Alaris?
— Acha que ver meu passado te dará vantagem?
— Não… — sussurrei.
Mas ele ouviu.
E sorriu.
O lago brilhou. Maegor rugiu, desesperado, tentando se libertar.
Ele me queria morta.
Mas Kaelhar…
Queria me ver quebrar primeiro.
Meus pés pararam.
Não havia mais para onde correr.
E ali, naquele momento onde mente, alma e medo se fundem, eu compreendi:
Eu estava no coração de Kaelhar.
E ele não queria me matar.
Ele queria me desvendar.
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Atualizado até capítulo 23
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