A Tentação do Bruxo.

A Tentação do Bruxo.

O chamado de Kaelhar.

O campo estava em silêncio.

Cinzas sob meus pés. O vento lambeu minha capa com dedos frios e antigos. Acima de mim, as estrelas tremiam como feridas acesas.

Fechei os olhos.

Sussurrei seu nome, como uma chave esquecida em minha língua:

— Alaris…

A magia respondeu. Como sempre faz quando é sangue que a chama.

Meu espírito se desprendeu do peso do corpo e percorreu o véu entre mundos, como uma lâmina atravessando névoa.

Ela dormia.

Estendida sob lençóis negros, com a lua riscando sua pele como prata líquida. A loba ali, não rosnou, minha loba também estava dentro de mim, e lobo sente lobo.

Mas havia outro do lado de fora da casa.

Um segundo lobo. Jovem, selvagem. Recém-vindo.

E ele me viu.

Senti seus olhos como lâminas arranhando minha presença espectral. Não me atacou, mas se pôs entre mim e ela. Um aviso silencioso. Uma promessa de dentes.

Ignorei.

Meus olhos estavam nela.

Alaris.

Cabelos espalhados como sombras quentes sobre a cama. As mãos soltas. A boca entreaberta. Tão linda. Tão viva. Um insulto à dor de onde vim.

Minha presença a tocou, e seus olhos se abriram, ainda no sonho. Mas agora, conscientes. Não fugiu. Não gritou, seus pais não podiam mais entrar em sua mente, ela mesmo me ajudou, mesmo que involuntariamente.

Caminhei até ela.

A túnica de treino marcava seus ombros, as pernas firmes. A guerreira já se formava onde antes havia uma menina de olhos curiosos.

Ela me viu.

E não soube odiar.

— Kaelhar… — murmurou.

Ah… a forma como meu nome escapou de seus lábios. Como se me pertencesse. Como se não fosse maldição.

— Chegou a hora — repeti, com a mesma voz que um dia usei quando ainda não sabia o que era perder tudo.

Ela hesitou. Mas algo em sua mente abriu a porta.

Ela vinha.

Não com os pés. Com a alma.

Como se atraída, como se enfeitiçada. Mas não era feitiço. Era conexão.

Algo antigo. Algo mais fundo que magia.

E então, atrás dela… Ferren ergueu a cabeça.

O outro lobo rosnou.

Malditas bestas. Guardiões de um coração que não os pertence.

A visão vacilou.

A raiva cresceu em mim como uma chama impaciente.

— Ela é luz — sussurrou Maegor em minha mente. — E você nasceu para apagá-la.

Mas minha mão, em vez da lâmina, apenas se ergueu no ar.

E, por um instante, eu somente… olhei.

Alaris.

A bruxa que eu deveria matar. Ou a única capaz de me salvar.

Ela veio. Eu soube antes de vê-la.

O campo estava silencioso, a mesma terra estéril das visões. Cinzas sob os pés, ar rarefeito como se o mundo prendesse a respiração. E então ela cruzou o limiar.

Alaris.

A bruxa. A filha de Elowen. A que Maegor diz que devo matar, a que é assim como eu... Bruxa e Lobo.

Trazia a túnica de treino. A pele marcada pelo luar, não por joias. Um traço de delicadeza no fundo do seu olhar. Os olhos, os olhos eram brasas acesas, e neles não havia medo.

Atrás dela, Ferren se postou, os músculos prontos para o salto.

Mas eu ri.

Um som frio, grave, afiado.

— Não tente contra mim, lobo nojento. — ergui a voz para o céu que tudo ouvia. — Nasci da morte. Da ruína. Da última lágrima de uma mulher que já estava morta. Sua mandíbula não é párea para a maldição que me gerou.

Ferren rosnou. Alaris, não.

Ela deu um passo à frente. A poeira nem se atreveu a subir.

— Você fala como se eu fosse uma criança, Kaelhar. — sua voz cortou o campo como aço polido. — Mas não sou mais a menina que você viu aos cinco anos.

— Não? — inclinei a cabeça, observando. — Você veio… como sonhei. Como chamei. Foi a minha magia que te trouxe até aqui, Alaris.

Ela sorriu. Mas não havia doçura.

Apenas dentes.

— Foi a última vez que isso aconteceu. — sua voz firme, audaciosa, carregava o peso de quem cresceu entre lobos e bruxas. — Não me controlará de novo, sou tão forte quanto você.

— Não... Você é só uma menina, ainda que lute e treine, não é igual a mim. — falei e ela não demonstrou nenhuma tensão.

— Você ainda pode mudar, ainda dá tempo, somos os únicos que carregamos os dois mundos dentro de nós, se nos conhece sabe que quando nasci a Loba se desprendeu da minha mãe, sabe que não precisamos ter a guerra, nossos ancestrais venceram, vamos fazer isso juntos. — ela falou.

— NÃO. — gritei. — não quero sua misericórdia, quero justiça, a morte de quem matou os meus.

— Porque tem medo? — ela questionou.

Por um instante… eu hesitei.

Aquela presença. Aquela fúria calma.

Ela era mais do que Maegor dizia. Mais do que eu lembrava.

Intrigante. Perigosa. Tentadora.

Mas então o segundo lobo se moveu — o menor. Novo. Selvagem.

Não perderia essa chance.

Rápido demais. Ferren saltou.

Mas o feitiço já havia sido sussurrado, antigo, sem idioma humano, entoado dentro de mim desde que ela me olhou.

— Shai’tor vhalen. — chamei.

O campo brilhou por um piscar.

A realidade se rasgou como tecido. Um canto profundo ecoou, baixo e ancestral. A terra tremeu.

Ela desapareceu.

Como fumaça.

E eu com ela.

Ferren uivou atrás de nós, tarde demais.

Levando apenas o vazio. O cheiro de magia. E a certeza:

A guerra começara.

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Maria Helena Macedo e Silva

Maria Helena Macedo e Silva

iniciando mais uma leitura👀📖👊

2025-06-25

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