capítulo 3

Selena sai do banho com a pele ainda úmida, os cabelos pingando água quente no azulejo frio. Na pia, uma muda de roupa dobrada com cuidado: uma camiseta larga e uma calça de moletom macia. De Ana, claro. Sempre prática. Sempre presente.

Veste-se devagar. Os músculos relaxaram um pouco, mas o cansaço segue. A cabeça, pesada. A alma, mais ainda.

Na cozinha, Ana já colocou um prato simples na mesa: arroz, feijão, ovo frito, e uma caneca de chá.

— Come. Nem discute. — Ela puxa a cadeira com o pé.

Selena obedece. Come em silêncio, mastigando devagar.

— Sabe o que você devia fazer? — diz Ana, de repente. — Chamar a polícia. Botar aquele velho pra fora. O apartamento é seu. Sua avó deixou pra você, não pra ele. Ela nem gostava dele. Deve estar rolando no túmulo.

Selena solta um meio sorriso. Não é de rir, mas Ana sempre tem esse jeito de falar que arranca alguma coisa dela.

— Não tenho coragem, Ana. Não com ele ali dentro. Ele... ele é imprevisível. Um fósforo perto de gasolina.

Ana balança a cabeça, frustrada. Mas não força.

— Um dia você vai ter que escolher. Ele ou você.

Silêncio. A frase fica no ar, como fumaça. As duas sentem o peso dela, mas nenhuma diz mais nada.

---

Ana guia Selena até o quarto de hóspedes. É pequeno, mas limpo. A cama está feita, e o ventilador gira no teto com um barulho baixo e constante.

— Se quiser fechar a porta, tudo bem. Se quiser deixar entreaberta, também. Fica à vontade.

Selena toca o lençol, sente a maciez, o cheiro de sabão.

— Obrigada, de verdade.

— Dorme. Amanhã é outro dia — diz Ana, e a deixa ali.

Selena se deita. Vira de lado. Depois para o outro. O corpo está pronto pra desmaiar, mas a cabeça resiste. A voz do pai ecoa. As ruas. As flores. As mãos desconhecidas que tocaram seu destino sem que ela visse.

Eventualmente, o sono vence. Frágil, leve. Mas é tudo que ela tem.

---

A quilômetros dali, o celular vibra em cima de uma mesa suja. O namorado de Ana está sentado com dois homens de fala arrastada e olhar de pedra. Um deles, com tatuagens em russo no pescoço, analisa as fotos de Selena com interesse.

— É diferente. Olhos raros. Cega, mas bonita. Corpo bom. Isso vende. Vende muito.

O namorado sorri, satisfeito. Dinheiro fácil. Vingança garantida.

— Quanto?

— O bastante pra você sumir por uns dias e voltar com outro carro. Ela é nossa agora.

Selena dorme sem saber. Mas o destino dela já mudou de trilho.

E o próximo trem vai direto pro inferno.

Os dias seguintes passam como sempre… ou quase.

Selena acorda cedo, organiza os arranjos com as flores que Diana separa com carinho, coloca os óculos escuros, pega a bengala e sai para vender. As rotas são quase sempre as mesmas: restaurante, praça, esquina do mercado. Vende bem em dias quentes, menos quando chove. As pessoas gostam dela. Ou da ideia dela. A vendedora cega com os olhos lindos.

Mas algo mudou.

Não são os sons. Nem os cheiros. É o ar.

Há uma pausa estranha nas conversas de rua. Um zumbido na nuca. Um tipo de silêncio que não existia antes. Selena sente. Quem vive no escuro aprende a perceber o invisível.

Num fim de tarde, depois de vender metade das flores, ela caminha até a floricultura. Diana está atrás do balcão, mexendo nas violetas.

— Senhora Diana?

— Oi, querida. Chegou cedo hoje.

— A senhora... notou alguma coisa estranha esses dias? Gente nova por aqui? Alguém perguntando de mim?

Diana levanta os olhos.

— Estranha como?

Selena hesita.

— Eu não sei. Só… parece que tem algo diferente. Como se tivesse alguém me olhando. Sempre.

Diana sorri, mas o sorriso não é leve.

— Não vi nada, não. Tá tudo igual por aqui. Mesmas caras, mesmos carros. Sei que pra você é mais difícil perceber isso, mas olha... se tivesse alguma coisa errada, eu te falava. Juro.

Selena balança a cabeça. Confia em Diana. Mas a sensação não vai embora.

Ela volta pra casa. Passos calculados. Ouvindo tudo, sentindo tudo. O pai, bêbado como sempre, dorme no sofá. Ana, preocupada, pergunta se está tudo bem. Selena diz que sim. Porque é mais fácil do que tentar explicar o que não se pode provar.

Mas o que ela não vê — o que ninguém diz — é que tem sempre alguém ali.

Um homem encostado em um carro estacionado. Um celular gravando cada passo. Às vezes um segundo carro, mais longe, com vidro escuro e motor ligado. Outros rostos, outros olhos. Ela nunca os ouve. Eles não querem ser ouvidos.

Eles só observam. Anotam. Marcam rotas, horários, pontos de distração.

Selena vive sua rotina. Mas sua liberdade está sendo medida, milimetricamente, por alguém que a vê como produto — não como pessoa.

E quando ela finalmente perceber…

Pode ser tarde demais.

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