O sol já passa do meio do céu quando Selena se posiciona perto da entrada lateral do restaurante. O cheiro de carne grelhada mistura-se ao perfume das flores que carrega. Um casal compra uma rosa, ela agradece. Outro homem pega um pequeno buquê de dálias e paga sem dizer uma palavra.
Selena trabalha com calma. Cada gesto é ensaiado: a mão que oferece, o sorriso que não exagera, a voz baixa mas segura.
Do outro lado da rua, um homem com moletom escuro e boné tira fotos com o celular. Finge estar distraído, como se apenas testasse a câmera, mas a lente está fixada nela.
— Linda, né? — diz ele ao amigo ao lado, que segura uma sacola plástica.
— Mesmo cega. E olha isso — mostra uma das fotos — parece uma atriz. Vai dar grana.
Selena não percebe. Está ocupada ajeitando as flores, contando os arranjos restantes com os dedos. Trabalha com eficiência, como sempre. Mas o homem que a fotografa não está ali por acaso.
É o namorado da Ana.
Sem que Ana soubesse, ele tentou agarrar Selena semanas atrás. Esperou a amiga sair, entrou no apartamento com uma desculpa qualquer, e quando tentou forçar um beijo, ela sentiu o cheiro de cigarro e mentira, virou o rosto — e depois o joelho. Um chute direto, seco, no meio das pernas. Ele caiu no chão gemendo. Ela não falou nada. Só trancou a porta.
Agora, ele quer se vingar.
E tem contatos. Gente que paga bem por garotas com aparência rara. Gente que não liga se ela é cega, ou talvez ache isso até mais interessante.
— Vamos só seguir ela, pegar mais umas fotos, mandar pro cara em Jersey. Se ele curtir, fechamos — diz o homem com o celular.
Selena se levanta, ajeita a alça da bolsa, e segue para o próximo ponto. Sem saber que há olhos nela. Sem saber que o mundo que já é cruel está prestes a ficar mais perigoso ainda.
Mas o que eles não sabem...
É que ela não vai cair fácil.
Selena chega à porta do apartamento com os pés doendo, as mãos marcadas pelos arranjos que carregou o dia inteiro. A chave gira na fechadura com um estalo seco. Ela abre.
O cheiro de álcool a atinge primeiro. Forte. Quase sólido. Lá dentro, o pai está pior do que quando saiu: garrafas quebradas no chão, a televisão berrando futebol, e ele, caído no sofá, murmurando frases desconexas.
— Inútil... florzinha cega... devia agradecer por eu ainda respirar nesse buraco...
Ela não responde. Só dá um passo pra trás, o cansaço pesando no corpo, como se o teto estivesse prestes a cair.
— Selena?
A voz vem do lado. É Ana, parada na porta do próprio apartamento, segurando uma toalha nos ombros, cabelo preso em um coque desleixado.
— Entra aqui. Vai — diz com um tom direto, mas gentil.
— Eu não quero incomodar...
— Ele não tá aqui — interrompe Ana, firme. — Nem volta hoje. Vai sumir com aqueles otários dele. Você pode tomar um banho, comer alguma coisa, e deitar um pouco. Só isso.
Selena hesita. Segura a bengala com força. Cada músculo do corpo implora por descanso, mas ela ainda carrega aquela resistência de quem aprendeu a não pedir nada.
— Sério, Lena. Vai. Só vem.
Ela entra. O apartamento de Ana tem cheiro de sabonete e café velho, mas é um paraíso perto do que deixou para trás. Deixa os óculos escuros sobre a mesinha. Ana pega sua mão com cuidado e a leva até o banheiro.
— Toalha tá pendurada. Shampoo de camomila. Se eu soubesse que você vinha, tinha deixado a água mais quente.
Selena sorri de leve. Pela primeira vez no dia.
— Obrigada, Ana.
— Vai lá. Se joga. Depois a gente vê o resto.
Selena tranca a porta, apoia a bengala na parede e começa a tirar a roupa. Cada peça é um alívio. Entra no chuveiro, deixa a água cair. Quente, constante. Fecha os olhos — não que isso mude algo — e deixa o cansaço escorrer junto com a água. Pela primeira vez em dias, ela respira fundo.
Não se sente segura. Mas, por um momento, se sente menos sozinha.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 74
Comments
Renata
nossa 😦 a vida dela e um luta e ainda vai piora 🙏
2025-06-16
0