Até o vento sopra o nome dele

O carro desacelerou quando passei pela placa de “Bem-vindo a Serra Alta”.

A mesma entrada de sempre, a mesma curva levemente rachada, a mesma sensação no peito.

Mas eu não era mais a mesma.

O sol da tarde filtrava-se entre as árvores, tingindo a estrada com um dourado nostálgico. Havia algo de cruel em como tudo parecia intocado como se os anos que se passaram não tivessem importado. Como se o tempo tivesse congelado esperando minha volta.

Respirei fundo e afrouxei os dedos do volante. Eu já tinha me prometido não sentir tanto, mas a verdade é que meu coração batia com força. Parte pelo medo, parte pelas lembranças que insistiam em me assombrar.

Aquela cidade era um campo minado de memórias.

Minha infância, meus segredos… e ele.

Lucas.

Seu nome apareceu na minha mente sem pedir licença, e só o som imaginário dele já era o suficiente para apertar meu estômago.

Será que ele ainda morava aqui? Será que ainda lembrava de mim com raiva… ou com saudade?

Estacionei em frente à casa do meu pai, o mesmo sobrado bege de portão de ferro que range, onde passei todas as noites da minha adolescência desejando o mundo lá fora. Agora, estava de volta. Mais velha. Mais calejada. Mais quebrada.

Abri a porta do carro devagar. O cheiro de terra molhada e jasmin subiu como uma onda quente. Andei até o portão com passos cuidadosos. Na varanda, o olhar cansado de meu pai me esperava. Ele não estava de pé desde o AVC, quase nada nele estava inteiro mas seus olhos brilharam do mesmo jeito de sempre.

Joaquim - Marina… — ele murmurou, com a voz falha e um sorriso sincero.

Joaquim- Você voltou.

Sorri com o que restava da minha coragem e fui até ele, me ajoelhando para abraçá-lo.

Marina- Voltei, pai. Dessa vez… pra ficar um tempo.

Talvez muito mais do que isso.

Não quis pensar em São Paulo. Em Renato. No colapso emocional que me tirou do eixo. Não queria lembrar dos olhos dele me encarando com aquele olhar possessivo, nem das palavras sussurradas no meu ouvido como promessas que mais pareciam sentenças.

Ali, tudo o que eu queria era paz.

Mas paz era algo raro em Serra Alta. Ainda mais para quem carregava o passado nos ombros como eu.

Entrei em casa e fui recebida por um leve cheiro de bolinho de chuva Clarice devia ter passado por ali. A sala estava arrumada, com uma manta sobre o sofá e flores frescas no jarro da mesa. Havia amor naquele lar, mesmo ferido.

Enquanto subia para meu antigo quarto, meu olhar cruzou uma moldura antiga na parede. Uma fotografia em preto e branco. Eu e ele. De mãos dadas, sorrindo como se fôssemos eternos.

Lucas.

O ar me faltou por um instante.

Naquela época, eu achava que amar alguém como ele era fácil. Que era só dizer “eu te amo” e o mundo nos recompensaria. Mas o mundo tem suas próprias regras. E, às vezes, te obriga a ir embora… mesmo quando seu coração grita para ficar.

Toquei a foto com os dedos, engolindo o nó na garganta. Ele parecia tão jovem ali. Tão meu.

Mas agora, ele não era mais nada meu. E talvez nunca mais fosse.

Ou será que o tempo, de algum jeito estranho, ainda guardava espaço para nós?

Desci as escadas ao ouvir a porta da cozinha bater duas vezes como sempre fazia.

Clarice - Trouxe pão fresco! — a voz animada de Clarice ecoou, acompanhada do som das sacolas plásticas se chocando na mesa.

Clarice - E aquele café que você gosta, o com grãos moídos na hora. Achei que fosse precisar.

Ela surgiu na sala como um furacão colorido, usando um vestido florido e os cabelos cacheados presos num coque bagunçado.

Marina- Clarice… — soltei um sorriso cansado, me aproximando.

Marina- Você continua igualzinha.

Clarice- E você continua linda, mesmo com essa cara de “acabei de enfrentar o inferno”. — Ela me abraçou forte, e por um instante, tudo parou. Era bom estar ali. Com ela. De novo.

Nos sentamos na cozinha enquanto ela despejava o café na caneca, os olhos atentos me examinando.

Clarice- Então… vai me contar tudo ou vai fingir que essa volta é só uma coincidência?

Marina - Vim cuidar do meu pai, Clarice.

Clarice- Claro. Mas sei que não é só isso. — Ela deu um gole no café. — Marina, você sumiu por dez anos. Não veio nem no Natal. E agora está aqui… sozinha, largando um emprego fodástico e um ex que era praticamente um advogado de novela?

Eu encarei a fumaça que subia da caneca.

Marina- Eu precisava ir embora de lá. Dele. De tudo. Eu não era feliz, Clarice. Só estava sobrevivendo.

Ela assentiu devagar.

Clarice- E o Lucas?

Meu coração deu um salto. Eu sabia que esse nome viria. Cedo ou tarde.

Marina- Eu não o vi ainda.

Clarice- Mas vai. A cidade é pequena, e vocês têm muita coisa mal resolvida.

Marina- Não tem mais “nós”, Clarice.

Ela arqueou uma sobrancelha.

Clarice- Talvez não. Mas tem algo aí dentro ainda. Eu vejo nos seus olhos. E olha… — ela pousou a mão sobre a minha.

Clarice- Você me deixou aqui, tentando te defender de tudo. De todos. Até do próprio Lucas.

Marina- Ele ficou com raiva?

Clarice- Muito. No começo. Depois, ficou só… quebrado. Ele não dizia, mas era visível. Depois entrou pro exército, desapareceu também. Voltou uns anos atrás, mudou muito. Mais fechado, mais duro. Mas ainda com aquele olhar que só amolece por uma pessoa. —Ela me olhou direto.

Clarice- E essa pessoa é você.

Suspirei. Doía ouvir isso. Doía porque ainda existia algo pulsando dentro de mim também. Algo que eu enterrei com a esperança de que morresse. Mas não morreu.

Marina- Não sei se consigo olhar pra ele e fingir que nada aconteceu, Clarice. E não sei se consigo olhar e admitir que tudo ainda importa.

Ela se levantou, pegou minha mão e puxou de volta pra sala.

Clarice - Então se prepara, amiga. Porque aqui, até o vento sopra o nome dele.

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