Os sinos da igreja matriz tocavam seis badaladas quando Helena despertou assustada. Seu coração batia apressado, como se pressentisse que aquele dia traria o peso de uma vida inteira. A casa ainda dormia, mas lá fora o céu já clareava devagar, tingido de um alaranjado difuso. O galo da vizinhança cantava, e o cheiro de lenha queimada se infiltrava pelas frestas da janela.
Levantou-se devagar, o piso de madeira rangendo sob seus pés descalços. Vestia uma camisola simples, de algodão branco com rendas no busto, e seus cabelos soltos ainda traziam vestígios da noite anterior, quando, escondida entre os arvoredos, amou Paulo como se não houvesse amanhã.
Mas o amanhã havia chegado.
No espelho manchado e oval de seu quarto, viu sua imagem refletida com olhos vermelhos de tanto chorar. Tocou os próprios lábios com os dedos — ainda lembrava do gosto dos beijos dele. Deitou-se novamente, enrolada no cobertor, mas o peso no peito era tão grande que sequer conseguia respirar direito.
Mais tarde, ouviu o pai chamar da cozinha:
— Helena, apruma-te! O Coronel vem cá hoje pra acertar os detalhes do casamento.
Ela não respondeu. Fechou os olhos com força e prendeu o grito que se formava na garganta.
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Na sala principal da casa, seu pai — Benedito, homem rijo, de fala firme e ideias curtas — limpava o tampo da mesa com a palma da mão. Sua esposa, Dona Matilde, colocava café na garrafa de esmalte azul enquanto os olhos escapavam a cada segundo na direção da filha, ainda no quarto.
— O homem vai trazer o contrato e o dote — disse Benedito, empinando o peito como se aquilo fosse motivo de orgulho. — Quando casar com Helena, vamos pagar a dívida com o banco e ainda sobra pro novo arado.
— E se ela não quiser? — arriscou Matilde, num sussurro temeroso.
— Mulher! Quem disse que querer entra nisso? Moça que mora em casa de pai obedece e casa com quem se manda. Sempre foi assim, sempre será. Se eu não tivesse casado contigo à força, tu achas que teria escolhido homem como eu?
Matilde silenciou. Seus olhos marejaram, mas nada disse. Engoliu a dor como se fosse água amarga.
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Helena saiu do quarto mais tarde, o vestido leve de cor lavanda e os cabelos presos num coque frouxo. Caminhava como quem atravessa um corredor de forca. Na varanda, o Coronel Olavo já esperava. Vestia roupa engomada, bengala dourada e um chapéu de feltro escuro. Seu bigode retorcido e o olhar calculista deram à jovem um calafrio na espinha.
— Senhorita Helena... — disse ele, tirando o chapéu com falsa gentileza. — Sempre formosa. Como vai?
— Bem — respondeu ela, sem olhar nos olhos dele.
— Tenho cá comigo os papéis do contrato. Se estiverem de acordo, marcamos a cerimônia em quinze dias.
Benedito assentiu de imediato.
— Está mais que bom! A moça estará pronta. E agradeço de novo pelo auxílio. É difícil achar homem disposto a se casar com mulher que já passou dos vinte...
Helena apertou os punhos. Aquela frase foi como um tapa.
Olavo se virou para ela.
— E a senhorita? Tem alguma objeção?
Ela respirou fundo. Pensou em Paulo. Pensou em fugir. Mas o rosto do pai surgiu em sua mente. E a ameaça sussurrada por ele semanas antes ecoou:
"Se recusar, ponho-te na rua com uma mão na frente e outra atrás."
— Não, senhor — disse, com voz trêmula. — Não tenho objeções.
Olavo sorriu. Um sorriso torcido, de dono de gado.
— Excelente.
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À tarde, Helena saiu pela porteira dos fundos e correu até o celeiro velho. Lá dentro, entre os fardos de palha e o cheiro de couro, Paulo já a esperava. Estava sentado em um banquinho, esculpindo um pequeno cavalinho de madeira.
Ao vê-la, levantou-se.
— Que houve?
— Ele veio. Está tudo decidido. Em quinze dias estarei casada, Paulo.
Ele largou o cavalinho e caminhou até ela.
— Não... Não podemos permitir isso. Eu sou homem feito, posso lhe dar uma vida digna! Não preciso ser coronel pra lhe amar, Helena!
Ela chorou, deitando-se nos braços dele.
— O amor não basta quando se tem fome, Paulo. E meu pai... meu pai me vendeu. Como se eu fosse boi de feira.
Ele beijou sua testa.
— Vamos fugir. Hoje mesmo. Antes que seja tarde demais.
Helena se afastou, o olhar perdido.
— Não posso. Ele ameaçou meu pai. Disse que se eu fugisse, se eu falasse, ele faria mal a ele.
— Maldito seja! Um homem assim não merece nem o chão que pisa!
— Eu tenho medo... de perdê-lo. E medo de que morras tentando me salvar.
Ele se ajoelhou diante dela.
— Pois prefiro morrer tentando te salvar do que viver sabendo que te perdi.
Ela o abraçou com força, como se quisesse fundi-lo ao próprio corpo. Ficaram assim por longos minutos. Depois, ele a deitou na palha e a amou com delicadeza, como se aquele fosse o último momento de ambos sob o sol.
E talvez fosse mesmo.
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Verônica, que assistira de longe a dor da amiga, decidiu naquele dia que algo precisava ser feito. Foi até o cartório no centro da vila e pediu informações sobre casamentos forçados e denúncias anônimas. O escrivão a olhou com desdém.
— Moça, o que se passa em casa de família, em casa fica. Melhor não se meter, antes que sobre pra ti.
Ela saiu dali com mais raiva ainda.
— Se a justiça dos homens se cala... então buscarei a justiça de outra forma — murmurou.
E assim começou a escrever uma carta. Endereçada a um amigo distante que trabalhava como policial criminal em outra cidade.
Um homem chamado Paulo.
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Enquanto isso, Helena voltava para casa, suja de palha, com cheiro de amor na pele e a alma em frangalhos. Mas agora algo dentro dela ardia. Não era só medo. Era também esperança. E ela sabia: ainda restavam dias antes do casamento.
E onde há dias, há chance.
Personagens
Helena
Verônica
Olavo
Paulo Felipe
O restante mostrarei no decorrer da história
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