O dia mal havia começado quando Helena sentiu que o mundo que conhecia estava prestes a ruir. A chegada do coronel Olavo à sua casa era como o prenúncio de uma tempestade. Mesmo sem saber o que se passava dentro da sala, seus instintos gritavam. Havia algo naquela visita inesperada que lhe provocava um frio no estômago. Sentada no batente dos fundos, ela ouvia os passos ecoando pelo assoalho, as vozes masculinas trocando frases curtas, sérias, definitivas.
Verônica, sua amiga e confidente, chegou ofegante. Vinha do curral, com as saias levantadas até o tornozelo e o rosto corado.
— Helena, tu viste quem acaba de chegar?
— Vi sim — respondeu, com um fio de voz. — O coronel.
— Pois te prepara. Quando homem daquele naipe baixa nesta casa, não é pra tomar café. Ouvi o Seu Antônio falar que ele quer fazer proposta.
Helena apertou os dedos contra os joelhos. O coração parecia tamborilar dentro do peito.
— Proposta de quê, Verônica?
Verônica abaixou o tom, se aproximando como quem traz um segredo grave.
— De casamento, ué. Dizem que o coronel não tirou os olhos de ti na missa do domingo passado. E que desde que a mulher dele se foi, vive à cata de nova esposa pra "acomodar a casa".
Helena sentiu a boca secar. O cenário se fechava como uma armadilha.
— Ele tem idade de ser meu avô, Vero.
— Tem mais que isso, Lena. Tem poder. E teu pai anda com as contas até o pescoço.
Helena levantou-se de súbito. Foi para o quarto, mas não para se esconder. Pegou o retratinho amarelado que guardava dentro da caixinha de costura. Era Paulo Felipe. Seu Paulo. Seu amor. O rapaz do sorriso sereno, das mãos calejadas, dos olhos que lhe prometiam um futuro inteiro, mesmo sem posses. O homem com quem sonhava construir uma vida, simples que fosse.
— Ele não pode... não pode fazer isso comigo — murmurou, enquanto as lágrimas lhe vinham aos olhos.
Mas seu pai podia. E estava fazendo.
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Na sala, o coronel retirava as luvas com a calma de quem está acostumado a ver o mundo se curvar à sua vontade.
— Como já disse, Seu Antônio, sei que vossa família é honrada. E como homem de respeito, venho com intenções claras. Desejo desposar sua filha Helena.
Antônio pigarreou. Olhava para o chão, mas seus olhos denunciavam a luta interna. De um lado, o amor paternal. Do outro, a promessa de salvamento financeiro.
— Coronel, Helena ainda é moça de espertezas... tem sonhos, sabe? Não sei se ela...
Olavo ergueu a mão, interrompendo.
— Sonhos não pagam dívidas, meu caro. A senhora sua esposa precisa de remédios, não? E o banco não espera.
Tirou do bolso um envelope grosso e o pousou sobre a mesa. O som surdo do papel pesado ressoou como um trovão abafado.
— Este é o primeiro sinal. Depois do casório, vossas contas serão quitadas. E sua filha será tratada como dama de respeito. Terá criadas, roupas finas, joias. Vai morar na casa grande. É mais do que muitas por aí conseguem.
Seu Antônio não respondeu. Pegou o envelope com mãos lentas, como quem segura uma pedra.
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Helena esperava por ele no alpendre. Quando o pai saiu, já sabia. As rugas no rosto, os olhos baixos, a ausência de palavras. Tudo dizia o que ele evitava dizer.
— Ele te ofereceu dinheiro, não foi? — perguntou, encarando-o.
Antônio se aproximou, sentou-se a seu lado. Por um instante, foi apenas um homem velho diante da filha que amava, mas que estava vendendo.
— Helena, minha menina... a vida nem sempre dá escolha.
— Deu ao senhor. E o senhor escolheu o dinheiro.
— Escolhi salvar tua mãe. Escolhi não perder nossa casa. Escolhi não morrer de vergonha diante dos vizinhos.
Ela levantou-se, sentindo a raiva queimando-lhe o rosto.
— E quem vai me salvar, pai? Quem vai me tirar do leito de um homem que me causa nojo só com o olhar?
Antônio não respondeu. As palavras lhe secaram na boca.
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Naquela noite, Helena correu para o celeiro. Não para fugir, mas para encontrar Paulo Felipe. O coração pedia socorro. Precisava dele. Precisava da verdade.
O luar invadia o espaço entre as vigas de madeira. O cheiro de feno, do suor dos animais, da madeira crua... tudo era familiar. E ali, sob a palha, encontrou Paulo encostado à parede, esperando por ela, como sempre fazia.
— O coronel veio... e me pediu às vistas de meu pai — disse Helena, com os olhos marejados.
Paulo a abraçou. Forte. Intenso.
— Pois não há homem nem dinheiro que me tire de perto de ti, Helena. Não será ele que há de ditar teu destino.
— Mas ele já ditou.
Ficaram ali por minutos que pareceram eternos. Helena soluçava em silêncio. Paulo apertava-lhe a mão com ternura.
— Foge comigo — disse ele, num sussurro. — Hoje. Agora. Temos o cavalo, o caminho. Ninguém nos para.
Ela o olhou, com o rosto banhado em lágrimas.
— Se eu for... ele mata meu pai.
E então, ambos souberam: estavam presos. À vontade de um homem. Aos dogmas de uma época. Ao destino cruel de quem ama em tempo errado.
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O casamento foi marcado para dali a três semanas. A cidade já murmurava elogios e escândalos contidos. "Uma menina de sorte", diziam uns. "Uma vergonha!", sussurravam outros. Mas todos sabiam: com o coronel ninguém se metia.
Helena, de dentro de sua prisão de seda, assistia ao mundo fechar as cortinas.
E enquanto isso, no fundo do coração, um plano crescia. Um plano silencioso, costurado em lágrimas e coragem.
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