Eu te disse uma vez, eu te disse duas vezes
Pelo que fizemos, pagaremos o nosso preço
Observando o céu noturno
SECRETS — OMIDO
Já fazia algum tempo que estava acordada, a dor no rosto era apenas uma lembrança infeliz agora, ou eu já havia me acostumado com ela.
— Está liberada, garota — diz a carcereira, abrindo as grades da cela com um rangido metálico que reverbera pelo corredor abafado.
Levanto-me sem pressa, ainda com o corpo doendo do chão duro e da noite mal dormida. Assim que saio, outra carcereira me espera no fim do corredor e faz sinal com a cabeça. Sou guiada até o térreo.
— Se correr, consegue tomar o café da manhã — comenta, olhando o relógio em seu pulso grosso. — Você tem cerca de trinta minutos.
Balanço a cabeça em resposta e sigo silenciosamente até o refeitório.
Meu cheiro é fétido e o refeitório me recebe com o mesmo desprezo dos olhares que se voltam na minha direção. Urina e merda pairam no ar como incenso profano. Ignoro os olhares e pego minha bandeja, andando em linha reta até uma mesa onde quatro jovens conversam em voz baixa. Não pergunto nada. Simplesmente sento.
Eles se levantam quase que instantaneamente, resmungando, afastando-se de mim como se eu fosse contagiosa.
Solto uma risada nasal, seca. Ótimo. Melhor assim.
Começo a comer com pressa, engolindo sem mastigar. A fome dilacera mais do que qualquer surra. Quando termino, levanto e esbarro em alguém. Nem me dou ao trabalho de olhar, sigo direto, jogo os restos no lixo e deposito a bandeja numa bacia enorme com água e sabão, como mandam as regras.
*****
Ao voltar para o dormitório, percebo que, infelizmente, minhas companheiras estão lá.
— Garota! Tomou banho na bosta? — debocha uma delas, fazendo as outras rirem.
Reviro os olhos, ignoro. Abro minha gaveta e pego o uniforme reserva.Corro até o banheiro. O banho é rápido e bruto. Esfrego minha pele com força exagerada, como se pudesse apagar a existência da noite anterior. Não há tempo para alívio: sou novata, e meu trabalho diário é limpar os banheiros da ala feminina. Vinte cabines, quatro banheiros de funcionários.
Duas horas.Sem atrasos.
Outra garota também foi designada para essa tarefa. A única outra novata do pavilhão A.
Quando volto para receber as ordens, ela está ao meu lado. Tem um olho roxo, assim como eu. Sinais do que acontece quando não se cumpre o tempo ou o padrão.
— Quando for quebrar o nariz de alguém de novo, me avisa antes. Assim me preparo emocionalmente pra apanhar também — diz, sem humor, caminhando até uma porta estreita.
— Aqui estão os produtos e materiais. Tudo que pegar tem que anotar. Tudo. Depois da limpeza, alguém verifica tudo.
Ela me entrega uma vassoura, escovas, panos e uma garrafinha com algum produto desinfetante.
— Você vai ficar com as privadas, paredes e o teto. Sim, o teto. Sofri dois dias sozinha com essa merda — diz ela com rancor, mas sem elevar a voz.
Só balanço a cabeça. Nenhuma palavra. Já entendi que aqui, silêncio é escudo.
O lugar é grotesco. As privadas estão entupidas.
O chão é puro mijo. E, sim, tem merda no teto. Parece que alguém se divertiu jogando excremento nas paredes mais distantes. Faço ânsia mais de uma vez. Uma das privadas exige que eu enfie o braço com luva e a escova até o fundo. O cheiro gruda na garganta. Quase vomito.
Foram duas horas de tortura. Pior que a cela. Pior que as surras.
Quando terminamos, guardamos tudo e esperamos a vistoria. Uma moça entra e faz a inspeção minuciosa. Enquanto isso, a garota ao meu lado, que ainda exalava ódio pela manhã, agora me olha com menos dureza.
— Já escolheu suas atividades extras? — pergunta sem me encarar.
— Não quero fazer nenhuma — respondo, seca.
— Imagino que não tenha ouvido a palestra de duas horas do diretor... e nem lido as quarenta páginas do manual — diz, quase sorrindo.
De fato, não. Mal olhei os papeis. Muito menos dei ouvidos ao velho maluco gritando do alto do palco.
— É obrigatório. Duas atividades extras. Se não escolher, eles escolhem por você.
Ela respira fundo. Seus olhos ainda carregam exaustão.
— Aliás, sou Afrodite — diz, enfim. — Dividimos o mesmo dormitório também.
Penso em ignorar, mas percebo que, querendo ou não, essa garota vai dividir o inferno comigo por muito tempo.
— Sou...
— Nix. Eu sei. Você deixou sua marca aqui — diz ela antes que eu termine.
Nesse momento, a mulher da vistoria se aproxima.
— Parabéns. Estão liberadas. Amanhã, mesmo horário, aqui — diz, afastando-se com passos firmes.
— Vai pra onde agora, Nix? — pergunta Afrodite, caminhando à frente.
— Não tenho ideia. Posso voltar pros dormitórios?
Ela ri, como se tivesse ouvido algo ingênuo demais.
— Se não cumprir as atividades obrigatórias, você não vai mais para o Anti Purgatório... Vai direto pra um dos Arcos do Purgatório. Preguiça, no caso.
— Que porra é essa de Purgatório? — pergunto, franzindo a testa.
— O diretor de Abaddon é obcecado por A Divina Comédia. Vive como se fosse o próprio Dante. Aqui temos os sete círculos do Purgatório e os nove do Inferno. A cada quinze dias acontece a Noite do Inferno, onde alguns detentos lutam entre si nas gaiolas. Enquanto os demais detentos assistem dos arcos.
— Você tá brincando... O livro mesmo?
— Sim, aquele livro. E esse lugar é doente o suficiente pra tentar imitá-lo.
Ela caminha mais depressa e acrescenta:
— Eu sei pouco. Cheguei no mesmo dia que você. Mas as meninas do quarto me situam, os únicos que são privilegiados são a…
Antes que a agora termine chegamos a uma área com várias salas, Afrodite me mostra uma mulher de certa idade e diz que ela é a instrutora. Me aproximo e antes que diga meu nome o instrutor começa.
— Como não tem atividade extra ainda vai arrumar algumas coisas, ordens do diretor.
Concordo e sigo-o.
— Olá, eu sou Celina, sou a agente responsável pelo pavilhão A, preciso que você arrume essa sala, era nossa antiga sala de dança,chamamos ela de sala dos espelhos, foi fechada já faz um tempo, o diretor resolveu reabri-la, você pode fazer isso? — a mulher por volta dos 45 anos, com um sorriso doce pergunta.
Confirmo com um balançar suave de cabeça.
Fico alguns minutos apenas observando aquele amontoado de coisas. As cadeiras empilhadas com ferrugem nos pés, caixas rasgadas com restos de papel higiênico, um colchão rasgado com espuma escorrendo pelos lados, latas de tinta seca, pedaços de madeira com pregos tortos, fios elétricos enrolados em uma vassoura quebrada. Parecia mais um amontoado de memórias de um hospício em ruínas do que uma sala de aula.
Respiro fundo e começo a arrastar as coisas uma a uma, sentindo o corpo protestar depois de já ter passado duas horas esfregando fezes do teto. O depósito indicado por Celina ficava no térreo, ao lado do refeitório, e a cada viagem eu cruzava com detentas que me olhavam com escárnio, outras com desprezo, e algumas, as mais jovens, com certo temor. Era curioso como o medo se misturava à curiosidade. Algumas cochichavam quando eu passava, outras apenas desviavam o olhar, como se minha existência fosse incômoda demais para ser encarada.
Os detentos por outro lado me olhavam com desejo, curiosidade e até cobiça.
Em uma dessas idas ao depósito, encontro Afrodite encostada na parede, com um pão seco na mão.
— A sala está muito bagunçada? — ela pergunta com um tom quase gentil.
— Parece que guardaram os fantasmas da instituição ali. — respondo, encostando na parede ao lado dela. — E você? Não teve tarefa extra?
— Literatura foi cancelada. O professor teve uma crise. — ela dá de ombros como se fosse algo cotidiano.
— Crise?
— Delírios religiosos. Começou a gritar que éramos criaturas impuras e jogou um livro pela janela. — ela ri e morde o pão com um olhar resignado. — Quase todo mundo aqui é um pouco... quebrado. Alguns mais que os outros.
Olho para ela por alguns segundos, tentando entender quem ela era por trás daquele jeito debochado. Seu olho ainda estava roxo, assim como o meu. O uniforme limpo não escondia os machucados nas mãos.
— Por que você ajuda? — pergunto. — Não precisa. Já tem trabalho demais com você mesma.
— Porque se eu não te ajudar, amanhã, sou eu limpando privada de novo sozinha. — ela pisca um olho e joga o restante do pão no lixo. — Vem. Vou te ajudar com a bagunça. Mas não se acostuma.
Voltamos para a sala e, juntas, conseguimos acelerar o processo. Com ela ali, o silêncio foi substituído por uma espécie de cumplicidade desconfortável, mas real. Começamos a jogar os restos fora, organizar o que ainda prestava e empilhar as cadeiras ao lado da porta.
— Aqui costumava ser a sala de dança, sabia? — ela comenta enquanto passa um pano em uma caixa empoeirada.
Congelo por um segundo.
— Celina falou que uma garota dançava aqui antes de enlouquecer e quebrar dois espelhos. Depois disso, virou depósito. — ela diz, sem perceber minha reação.
Engulo seco e volto a empurrar uma mesa.
— Celina disse que você dançava. — ela me olha, agora com mais atenção. — Por que parou?
— Porque me tiraram tudo que me fazia bem. — minha voz sai baixa, quase um sussurro.
Afrodite não responde. Só continua trabalhando em silêncio.
Depois de mais algumas horas, a sala finalmente parece um pouco mais habitável. Ainda suja, ainda sem alma, mas pelo menos não parece mais um cemitério de entulhos.
— Pronto. — digo, jogando a última caixa vazia no canto. — Posso ir agora?
— Celina vai vir checar. Se estiver tudo certo, você pode. — Afrodite se joga em uma cadeira e estica as pernas.
Fico em pé, o corpo moído, o cheiro de suor grudado na pele.
— E se não estiver tudo certo?
— A gente limpa de novo. — ela sorri de canto.
Celina aparece minutos depois, acompanhada de um rapaz alto e pálido, com cara de quem nunca viu o sol.
— Uau! Isso está... aceitável. — ela diz com entusiasmo, o tipo de entusiasmo que começa a me irritar. — Nix, ótimo trabalho. Afrodite, obrigada por ajudar.
— Ajudei porque sou boazinha. — ela sorri falsamente.
— Nix, você começa oficialmente suas aulas de luta depois de amanhã. — Celina anota algo em uma prancheta. — Você precisa de mais uma tarefa extra, bom vamos colocar dança então, você começa amanhã, vou te deixar com uma tarefa: pensar em uma trilha sonora que te represente. Algo que você ouviria se estivesse dançando para si mesma. Sozinha.
— Já disse que não danço mais. — rebato, seca.
—Não precisa dançar. Só sentir a música. — ela responde, ainda sorrindo — e você tem que seguir as regras.
Assim que ela se afasta, Afrodite suspira alto.
— Ela é como um raio de sol nesse lugar de trevas, não é?
— Um raio de sol que te dá enxaqueca. — murmuro.
Ela ri alto, verdadeira pela primeira vez.
— Vem, vamos pro refeitório. Talvez sobre algo pra comer.
Seguimos juntas, como duas sombras temporariamente unidas pelo caos. Pela sujeira. Pela dor.
Não sou idiota. Sei que isso não é amizade.
Ainda não.
Mas é um começo.
Ou, talvez, apenas mais uma ilusão dentro desse inferno chamado Abaddon.
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Atualizado até capítulo 60
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