Não desista de si mesmo
Pois todo mundo chora
Todo mundo se magoa às vezes
Às vezes tudo está errado
EVERYBODY HURTS — R.E.M
8 anos antes
Me posiciono no centro da sala. O chão de madeira rangia sob meus pés como se me implorasse por descanso, mas eu não escutava. Eu não queria escutar. A música ainda não havia começado, mas meu corpo já conhecia os acordes. Cada músculo sabia o que fazer. Era isso que me restava: a dança. Meu refúgio, meu esconderijo.
Quando danço, sou só eu. Sem meu pai. Sem a culpa. Sem o medo.
— Isabela, cinco minutos pra fechar — avisa a inspetora com um sorriso gentil.
— Ok, posso me trocar rapidinho?
— Rapidinho, combinado?
Concordo, agradecida, e corro ao vestiário. Troco o collant e o short pelo moletom largo que me afoga o corpo, mas me protege do mundo. Solto meus cabelos e eles caem como uma cortina de silêncio até a metade das costas. Sinto-me segura atrás deles. Seguro minha bolsa e corro.
— Tchau, Lu. Até amanhã!
— Até, Isa.
Na rua, o frio me abraça com mais gentileza do que qualquer pessoa em casa. Caminho devagar, os tênis arrastando no asfalto. Eu não queria voltar. Eu nunca quero. Aquela casa me engole. A cada noite, ela devora mais um pedaço da minha alma.
— Oi, Isabela — diz uma voz atrás de mim. Viro e vejo Heitor, um colega da escola dois anos acima da minha série. Não tenho nenhuma intimidade com ele, mesmo assim ele sempre me cumprimenta. Ele vem andando de costas, jogando uma bola de basquete entre as mãos. — Estava dançando de novo?
— Estava.
— Você dança bem. Fico te observando às vezes… — ele sorri. — Estava te esperando hoje.
Seu rosto magro, olhos verdes e os cachos acobreados bagunçados não me intimidam. Mas suas palavras, sim. Ele se aproxima demais. Tropeça. Eu, por instinto, o seguro pelo braço — e ele aproveita para me puxar pela cintura. Seu sorriso cresce, e meu estômago revida com náusea.
Meus instintos gritam. Meus músculos travam. Tento me afastar.
Ele aperta mais.
— Qual é, Bela… Já faz meses que tô a fim de você. Só quero uma chance.
Ele tenta me olhar nos olhos. Eu só quero sumir. Meu pai invade minha cabeça com sua voz podre, tão alta que parece ecoar no mundo:
"Você é minha. Só eu posso te tocar. Você é meu pequeno relicário."
Meu peito aperta. Meus olhos se enchem. A respiração falha.
— Só… me solta, Heitor. Por favor…
— Tá bom, tá bom! Não precisa chorar. Desculpa, ok? Desculpa, podemos começar de novo e sermos amigos?
Ele parece genuinamente assustado. Mas isso não importa. Eu não consigo explicar. Eu nunca consigo.
— Eu… preciso ir.
Corro. Corro com os olhos embaçados. Corro como se meus pés pudessem me arrancar da pele. Ele agora também acha que sou louca. Todos acham.
Finja ser boa. Finja ser boa. Finja ser boa.
A voz de Simon. Ela vem como uma faca afiada, cortando a escuridão que meu pai deixou.
Seis meses na clínica. Seis meses de frio, silêncio, gritos abafados e vozes atrás de portas fechadas. Mas também seis meses em que duas vozes me mantiveram viva: Simon e Morgan.
Dois espectros presos comigo naquela fortaleza. Nunca vi seus rostos. Só suas palavras. Mas foi o suficiente.
Simon sempre dizia: “Finja ser boa. Faça o que eles querem. E você sobrevive.”
E eu sobrevivi.
Desde que saí, repito isso como um mantra. Todos os dias. É isso que me impede de voltar pra lá.
Mas às vezes... eu acho que eles nunca existiram, foram apenas fruto da minha cabeça.
Chego em frente de casa. Paro. O portão já está entreaberto, como um convite maldito. Sinto o cheiro do lugar antes mesmo de entrar: suor e medo. A porta está encostada. Posso entrar. Ou posso dar meia-volta.
Fico ali. Um pé dentro. Um pé fora. Coração disparado. Minha mão treme. Minha alma já sabe o que me espera. Sempre soube.
A maçaneta está fria. Minhas mãos ainda mais. Respiro fundo, como se pudesse me encher de coragem num suspiro. Mas ela não vem. A coragem nunca vem. Só a lembrança da voz de Simon, como uma réstia de lucidez:
“Finge, Isa. Finge ser boa.”
Empurro a porta devagar. O ranger é longo, sofrido, como se a casa também estivesse cansada de abrigar monstros.
O cheiro é o mesmo de sempre. A mesma podridão que gruda na pele, no cabelo, na memória. A luz da sala está apagada, mas eu já conheço esse caminho de olhos fechados. Passo sem fazer barulho, sem atrair atenção.
Sem provocar. Nunca provoque.
Minha mãe está sentada no sofá, olhos fixos no vazio, as mãos cruzadas sobre o colo como se tivesse medo de se mover. A televisão está ligada, mas no mudo. Ela me olha e sorri, um sorriso triste, quase doente.
— Boa noite, mãe — digo, sussurrando.
Ela apenas acena com a cabeça, rápido, sem voz.
A escada range sob meus pés. Um som. Apenas um. Seguro a respiração e aguardo. Nada. Talvez ele esteja dormindo.
Mas a esperança dura pouco.
— Isabela — a voz dele vem de cima. Gélida. Precisa. Cruel.
Congelo no segundo degrau. O suor escorre pela nuca. Engulo o pavor.
— Sobe. Agora.
Subo. Sem dizer nada. Sem hesitar. Como um cão bem treinado. Como ele gosta.
O quarto dele está com a porta aberta. A luz da lâmpada bruxuleante pinta monstros mais belos que ele nas paredes. Ele está em pé, de camisa social desabotoada e os olhos vermelhos, mas não de choro, de fúria.
Não entro, para próximo a porta.
— Onde esteve?
— Na escola — respondo, tentando manter a voz firme.
Ele caminha até mim devagar, como uma fera. Seus passos são lentos. Pesados. Me medem, me estudam.
— Não minta pra mim, Isabela. Você chegou tarde.
— Tive ensaio... perdi a hora — minto. Sempre minto. Como ele ensinou.
A bofetada não me surpreende. A cabeça vira, a visão escurece por um instante. O gosto metálico do sangue na boca. Mas não reajo.
Nunca reaja. Nunca chore.
— Não sou idiota. Você pensa que pode me enganar? Pensa que eu não vejo como olha pros meninos? Como rebola naquele palco nojento?
Ele me segura pelo queixo, seus dedos cravando em minha pele. Seus olhos queimam os meus.
— Você é minha. Minha. Você só existe por minha vontade. E eu sou o único que pode tocar em você. Entendeu?
Assinto. Uma, duas vezes. Meus joelhos tremem, mas não caem.
— Finja ser boa — sussurro para mim mesma, quase sem som.
— O quê? — ele pergunta, mas já se afasta. Ri, como se achasse graça.
E então vira as costas e vai embora.
Fico ali, no corredor, sozinha. A pele ainda ardendo. A alma encolhida. Meu corpo inteiro treme, mas não desmorona. Já aprendi a não desmoronar.
Volto pro meu quarto com cuidado. Fecho a porta devagar. Me encolho na cama como quem se esconde dentro do próprio corpo. Meu santuário é de lençóis gastos e almofadas rasgadas.
E ali, no escuro, me permito sussurrar:
— Simon… queria que você estivesse aqui.
E por um segundo, um só, posso jurar que ouço sua voz, distante como um sussurro de vento atrás da parede:
“ Finge ser boa… Só mais um pouco…”
Não vejo a hora de finalmente me livrar desse inferno.
********
Dias se passam e é sempre a mesma coisa.
O medo toda vez que chego.
Depois de longos minutos encarando a porta antiga, bonita demais para o horror que guarda, respiro fundo e a empurro. A fachada perfeita da casa engana qualquer um: a cerca branca, o gramado verde impecável, o balanço que dança ao vento... Tudo cuidadosamente montado para esconder o caos.
Lá dentro, minha mãe cambaleia pela cozinha. Seu silêncio é carregado de álcool e culpa. Não me olha. Não pergunta. Ela apenas existe, afogada na anestesia barata da bebida, enquanto a casa se mantém limpa, cheirosa e sofisticada. A sala ampla, com o sofá em L, o tapete claro, a televisão gigante. Tudo meticulosamente arrumado para manter as aparências. Uma prisão dourada. Um mausoléu com perfume de lar.
Dou um passo na escada e minha pele arrepia.
Ele.
— Onde você estava, Isabela? — a voz vem cortante. Surgido das sombras dos fundos da casa, meu pai fecha a distância entre nós com os braços cruzados e os olhos estreitos como lâminas.
— Estava ensaiando para a apresentação de final de ano, pai — murmuro. Olho para o chão. Nunca para os olhos dele.
Ele se aproxima devagar. Como quem observa sua presa antes de rasgar a carne.
— Acha mesmo que vou permitir essa exibição profana? Esses teus cursos só te afastam de Deus. Só destroem sua alma. — Ele ergue a mão, mas não para bater. Apenas para acariciar meu rosto. Seu toque me faz querer vomitar.
— Você é minha missão. Vou arrancar o mal de dentro de você com as próprias mãos — sussurra, a boca quase encostando na minha orelha.
Sinto o estômago revirar. Quero correr. Gritar. Mas o medo me paralisa. Me enraíza ao chão.
Minha mãe aparece cambaleando, como uma sombra mal formada.
— Não toca assim nela... — ela balbucia, as palavras misturadas ao hálito de bebida.
Ele vira o rosto devagar. Um sorriso cruel cresce em sua boca.
— Mais um dia bêbada? Você é uma vergonha. Um parasita nojento. — Ele a empurra com violência. Ela cai contra a parede, sem nem tentar reagir.
É sempre assim. Primeiro ele destroi ela. Depois me arrasta junto.
Corro. Subo para o quarto. Tranco a porta. Afundo o rosto no travesseiro tentando silenciar os gritos, os estalos, os gemidos sufocados. Minutos talvez horas se passam. E os gritos enfim cessam.
Ele sobe. Ele sempre sobe.
— Abre essa porta, sua desgraçada! — ele urra, batendo como um animal enjaulado.
Soluço. Tento me esconder debaixo da cama. Finjo ser invisível.
Finja ser boa. Finja ser boa. Finja ser boa.
— AGORA, ISABELA!
E a porta se parte. A madeira estala, se rompe. Ele atravessa o quarto como um furacão. Me agarra pelos cabelos e me puxa, me arrasta como uma boneca quebrada. Meus joelhos raspam nos degraus, queimam, sangram.
No fim da escada, minha mãe está estirada.
Seus olhos… vazios. Sem foco. Sem alma.
O grito morre na minha garganta.
— Viu o que você me fez fazer?! — ele berra, andando em círculos, murmurando coisas desconexas. — Ela me desafiou... e agora está morta! MORTA!
Me joga sobre ela. O peso da morte encostando em mim.
— Tudo por sua culpa. Tudo por causa do seu pecado! — grita com os olhos injetados, os punhos cerrados.
Tento fugir. Me arrasto. Me rastejo. Mas ele vem atrás. Com um olhar que não é mais humano.
— Agora ninguém está entre nós, meu pequeno relicário — ele murmura, agachado, tão perto que posso sentir o cheiro da loucura escorrendo dele.
A cena seguinte vem em flashes borrados. O porão. O escuro. O cheiro de mofo. O frio.Vozes distantes, choros que não são meus, que duraram pouco tempo aqui, eles sempre duram. Na parte de cima a casa pode até parecer um local santo, mas o verdadeiro inferno está aqui, nos corredores do porão do Pastor Logan Belamont.
Ele me prende, como em outras vezes. Só que dessa vez é diferente. Dessa vez é uma cerimônia.
— Você precisa ser purificada — ele diz, enquanto me amarra pelas mãos em ganchos de ferro presos ao teto.
Tento lutar. Grito. Mas não adianta.
— O mal precisa sair. Preciso fazer você nascer de novo, sem pecado. — Sua voz está calma agora. Quase serena.
Ele esfrega sal grosso em minhas costas feridas. Depois, água gelada com vinagre e urina. E ora. Ora em voz alta, gritando uma oração distorcida, clamando pela libertação da minha alma.
A dor é insuportável.
Quando ele termina me larga no chão molhado e fétido.
Arranho as paredes. Minhas unhas se partem. O sangue escorre entre meus dedos. E ele ri. Ri como se estivesse salvando o mundo.
Meu corpo treme. Minha visão escurece. E antes que eu desmaie, ouço sua última frase como um sussurro vindo do próprio inferno:
— Você nasceu para ser minha. E só minha.
Finja ser boa, Isabela. Finja ser boa.
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Atualizado até capítulo 60
Comments
Gohan
Me apaixonei pelos personagens! 💞
2025-06-08
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