Silhuetas e Cicatrizes.

A porta do banheiro se fechou suavemente, abafando o som da água que logo começou a correr. Maya, com as roupas limpas de Sarah em seus braços, soltou um suspiro trêmulo. A imagem do monstro e a morte brutal de Sam ainda se repetiam em sua mente, um loop aterrorizante. Ela deixou as roupas na pia e, sem pensar muito, sentou-se no chão frio do box, deixando a água quente do chuveiro cair sobre ela.

A água escorria por seu corpo, lavando a sujeira e, por um instante, a sensação de horror que a envolvia. Mas as lágrimas vieram, quentes e incontroláveis, misturando-se à água que escorria por seu rosto. Ela se encolheu, nua e vulnerável, e chorou. Chorou pelo velho Sam, por sua vida que se desfez em cinzas, pela sua própria normalidade que fora estilhaçada em mil pedaços. Chorou pelo medo, pela incompreensão, pela incerteza do que viria a seguir. Era um choro silencioso, quase sem som, mas carregado de toda a dor e desespero que ela havia reprimido.

Enquanto isso, na sala de estar, Mike se afundou no sofá. O som do chuveiro era um murmúrio distante. Ele pegou a garrafa de uísque e serviu um copo, o líquido âmbar girando sob a luz fraca. Não havia pressa. Ele levou o copo aos lábios, o gosto amargo e quente do álcool descendo por sua garganta.

Seus olhos estavam fixos em um ponto invisível na parede. Aquele dia, seu primeiro dia completo em Veridia, havia se tornado um pesadelo de quebra de regras. Ele havia prometido a si mesmo que a magia ficaria enterrada, que nunca mais a usaria, não depois de Sarah. Mas a imagem do monstro no beco, a ameaça a Maya, o havia obrigado a quebrar o juramento. A sensação do poder em suas mãos, ainda que por um breve momento, era um lembrete do que ele havia perdido e do que tentava suprimir.

Ele também havia prometido a si mesmo que não se envolveria com ninguém, que viveria sua vida em reclusão, longe de qualquer emoção que pudesse trazer mais dor. E agora, havia uma mulher no seu apartamento, uma desconhecida que ele havia salvo com o poder que jurou abandonar. Mike tomou mais um gole, a culpa e a frustração misturando-se ao amargor do uísque. Ele sentia o peso das suas escolhas, o fardo de um caminho que ele pensou ter deixado para trás.

O som da água parou. Alguns minutos depois, a porta do banheiro se abriu, e Maya emergiu. Seus cabelos ruivos, ainda úmidos, escureciam em algumas mechas, e gotas d'água escorriam pelo seu pescoço. Ela vestia as roupas de Sarah: a camiseta um pouco larga, a calça de moletom caindo suavemente, mas que a cobria com um conforto simples, tão diferente das roupas rasgadas e sujas que tirou. O perfume floral, sutilmente doce, que a acompanhava, preencheu o ar pesado da sala.

Mike, que estava no sofá, com o copo de uísque na mão, olhou para ela. Por um instante, seus olhos castanhos se perderam. A visão de Maya com as roupas de Sarah, a fragrância familiar que vinha delas, trouxe um flash de memória, uma pontada de saudade que o fez apertar o copo. Era um vislumbre do passado que ele tentava selar a sete chaves, uma lembrança viva que se misturava à presença daquela mulher estranha e recém-chegada em sua vida.

Mas ele voltou a si abruptamente. Maya o olhava com uma mistura palpável de desconfiança e medo em seus olhos verdes, a vulnerabilidade nua em sua expressão. Ela estava em seu território, após uma noite de terror inimaginável, e ele era um estranho que havia demonstrado um poder que desafiava a realidade.

Mike pousou o copo na mesa de centro com um som seco e a olhou diretamente. Sua voz, ainda rouca, tentou soar tão neutra quanto possível. "Você não tem com o que se preocupar. Eu não faria mal a você de forma alguma, nem tentaria nada estranho." As palavras eram uma promessa, mesmo que a frieza em sua voz a tornasse quase robótica. "Você pode ficar no meu quarto por esta noite." Ele indicou uma porta no corredor. "Os lençóis estão trocados e limpos." Mike fez uma pausa, então acrescentou, quase como um adendo: "Eu vou dormir aqui na sala."

Maya assentiu lentamente, o medo em seus olhos diminuindo um pouco, substituído por um alívio exausto. A oferta de um quarto, de uma cama limpa e, mais importante, de espaço e segurança, era mais do que ela poderia ter esperado.

Maya entrou no quarto que Mike havia indicado, um espaço espartano, mas com uma cama arrumada que parecia um oásis. A maciez dos lençóis limpos, o cheiro de sabão, era um contraste bem-vindo à sujeira e ao horror da noite. Ela se deitou, o corpo exausto, mas a mente em turbilhão. O sono não veio. Imagens da criatura, o rosto aterrorizado de Sam, a chama na mão de Mike — tudo se repetia sem parar. Ela ficou ali, perdida em pensamentos, observando o teto escuro e o brilho fraco que vinha da sala.

Foi então que o som familiar do chuveiro ligando ecoou pelo apartamento. Mike. Era a vez dele de se livrar das tensões da noite. A ideia de dormir sem antes fazer algo para acalmar a mente era impensável para Maya. Lembrou-se de sua rotina: um copo de água com um pouco de açúcar era seu truque para combater a insônia em noites difíceis. Talvez pudesse ajudar agora.

Com cuidado para não fazer barulho, Maya se levantou da cama macia. O chão frio sob seus pés era um lembrete da realidade. Ela abriu a porta do quarto e espiou para fora, o apartamento envolto em uma penumbra convidativa.

Enquanto caminhava silenciosamente em direção à cozinha, seus passos foram interrompidos. Mike saiu do banheiro, a porta se abrindo com um leve rangido. Ele estava enrolado apenas em uma toalha na cintura, os cabelos negros molhados pingando no peito. A luz fraca da sala realçava a silhueta de seu corpo.

Inconscientemente, os olhos de Maya percorreram o homem. O que ela viu a fez parar. Não era o corpo magro e pálido que se esperaria de alguém que passou os últimos anos em luto e isolamento. Mike era musculoso, não de uma forma exagerada, mas com a solidez de alguém que havia treinado o corpo extensivamente. E então ela notou as cicatrizes. Várias delas. Longas e finas, outras mais largas e irregulares, algumas pareciam marcas de corte, outras de queimaduras. Elas contavam uma história silenciosa, marcando sua pele como um mapa de batalhas passadas. Eram cicatrizes que mostravam uma outra realidade de vida, a antiga vida de Mike como um mago, um combatente. Elas gritavam um passado de perigo e poder que contrastava drasticamente com a imagem de homem recluso que ele tentava projetar.

Por um instante, o terror da noite diminuiu, substituído por uma curiosidade inegável e uma nova camada de medo. Aquele homem não era apenas um estranho; ele era um enigma.

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