A Reencarnação de Samphyr

A Reencarnação de Samphyr

O início de um pesadelo.

O relógio marcava 23h57 no pequeno escritório empoeirado do necrotério policial de Veridia. Maya suspirou, esticando as costas. A cidade lá fora era um borrão de luzes de néon distorcidas pela chuva constante que chicoteava as janelas do velho edifício. Um dia típico em Veridia. Lá dentro, porém, o ar era pesado, impregnado com o cheiro metálico e doce de produtos de limpeza, uma fragrância que para Maya já era tão familiar quanto o perfume de seu próprio xampu.

Ela revisava os últimos relatórios, a caneta clicando suavemente contra o papel. Havia uma estranha serenidade em seu trabalho, um contraste irônico com a morbidez do ambiente. Corpos eram apenas corpos ali, histórias findas que ela ajudava a catalogar antes de seus destinos finais. Nada mais, nada menos. Seus cabelos ruivos, geralmente presos em um coque desgrenhado, estavam começando a se soltar, algumas mechas caindo sobre seus olhos verdes enquanto ela se inclinava.

Um calafrio percorreu sua espinha, algo que não tinha a ver com a temperatura ambiente. Maya franziu a testa, olhando ao redor. As luzes fluorescentes zumbiam, e a única outra pessoa no andar, o velho segurança, provavelmente estava cochilando em sua cadeira na portaria. Era só cansaço, pensou. Ela estava ali há horas.

Terminando o último relatório, ela o colocou na pilha de saída. Mais um dia. Pegou sua jaqueta pendurada na cadeira, sentindo o tecido gasto. O som da chuva se intensificou por um momento, quase como um estrondo distante, seguido por um silêncio abrupto que era mais perturbador do que o barulho.

Maya parou. Algo estava errado. O zumbido das luzes parecia ter parado. Uma escuridão mais densa do que o normal rastejou pelos corredores. O ar gelou, e o cheiro doce no ambiente agora parecia ter uma nota diferente, algo rançoso e úmido. Seu coração começou a martelar no peito. Ela não sabia o que era, mas o instinto em seu corpo gritava: perigo.

Maya tentou se convencer de que era apenas a fadiga. Aquele turno tinha sido excepcionalmente longo, e os nervos às vezes faziam truques. Ela balançou a cabeça, forçando um sorriso para si mesma no reflexo turvo da janela. "Só o cansaço, Maya", murmurou, sua voz um sussurro no silêncio opressor.

Ela apanhou a bolsa na mesa, o som do couro roçando a madeira ecoando de forma estranha no vazio. Enquanto caminhava pelo corredor principal, o cheiro de mofo e algo indefinível, quase orgânico, se intensificou. As luzes de emergência, que deveriam ter acendido automaticamente com a queda das fluorescentes, permaneceram inertes. A escuridão era quase palpável, as sombras dançando de forma grotesca em sua visão periférica, como se o próprio ar estivesse se contorcendo.

O pânico começou a se instalar, gelado e pontiagudo. Não era apenas cansaço. Havia algo terrivelmente errado. O silêncio era o que mais a assustava, um silêncio absoluto que parecia engolir qualquer som que ela pudesse fazer. Seus próprios passos pareciam amortecidos, irreais.

Ao se aproximar da recepção, a escuridão ficou ainda mais densa. Ela estendeu a mão, tateando a parede em busca do interruptor de luz, mas seus dedos só encontraram o frio úmido da pedra. De repente, um som rasgou o silêncio: um arrastar úmido, como carne sendo puxada por um piso molhado, vindo do fim do corredor que levava à sala de autópsias.

O coração de Maya disparou, um tambor frenético em seu peito. Ela prendeu a respiração, seus olhos verdes arregalados, tentando distinguir algo na escuridão. O cheiro rançoso ficou mais forte, quase insuportável. E então, uma sombra ainda mais escura se destacou da penumbra, uma forma grande e disforme que começou a se mover na direção dela, acompanhada do som repulsivo do arrastar.

Era inconfundível agora. Não era fadiga, nem imaginação. Estava se movendo na direção dela.

O ar fedia a morte e decomposição, um cheiro que Maya conhecia bem demais de seu trabalho, mas que agora a envolvia com uma intensidade nauseante. Na escuridão quase total, a forma disforme se materializou com um arrastar úmido e repugnante. Não era uma pessoa, nem um animal. Era uma aberração.

Seus membros eram bizarramente alongados e putrefatos, a pele cinzenta e bolhosa pendendo em farrapos, revelando músculos e ossos expostos em alguns pontos. A criatura parecia deslizar mais do que andar, cada movimento acompanhado por um som úmido e asqueroso, como algo escorregando em lama. Não havia olhos discerníveis em sua cabeça disforme, apenas cavidades escuras de onde parecia emanar uma aura de fome gélida. A proximidade daquele horror fez o estômago de Maya se revirar.

Um grito se formou em sua garganta, mas ficou preso. O instinto primordial de sobrevivência tomou conta. Correr!

Ela se virou abruptamente, os tênis de trabalho guinchando no piso liso, e disparou pelo corredor principal. A escuridão parecia se alongar, e as gárgulas nos telhados góticos de Veridia pareciam rir de sua desgraça. A porta de saída, uma barreira de metal pesado, parecia um farol de esperança. Ela correu, sentindo o ar pesado em seus pulmões, o coração batendo como um tambor de guerra.

Mas ao alcançar a porta, a mão que estendeu para girar a maçaneta encontrou resistência. Trancada. Um som seco, metálico, indicava o cadeado pelo lado de fora. Desespero gelou seu sangue. A criatura se aproximava, o arrastar úmido ficando mais alto, mais próximo. O cheiro de podridão sufocava-a.

Num frenesi, Maya puxou o celular do bolso. As mãos tremiam tanto que quase deixou o aparelho cair. Digitou o número do velho guarda, Samuel, que deveria estar cochilando em sua cabine de segurança do lado de fora. A cada toque na tela, o arrastar da criatura parecia se intensificar.

"Vamos, Sam, atende!", ela murmurou, a voz rouca pelo pânico.

Do outro lado da linha, o telefone tocou algumas vezes antes de uma voz sonolenta e arrastada atender. "Alô? Quem fala? Já é hora de ir, Maya?"

"Sam! É a Maya! Tem... tem alguma coisa aqui! A porta está trancada, abre!" As palavras saíram emboladas, quase um soluço.

Houve um silêncio, seguido por um resmungo. "Algo? Ah, qual é, menina? Me acordou pra isso? Já tô indo..."

Lento. Sam era sempre lento.

Maya virou a cabeça e viu a criatura. Estava a poucos metros dela, os membros deformados se arrastando com uma lentidão aterrorizante, mas constante. Ela podia ver a pele pendurada, quase esticar a mão e tocar aquela abominação. O ar parecia pulsar com a presença daquele monstro. O fedor era insuportável. Ela podia sentir o hálito frio e úmido vindo daquela coisa.

Um estalo.

O som do cadeado sendo destrancado. A porta se abriu para dentro, revelando a silhueta do velho Sam. Maya não pensou duas vezes. Mergulhou pela abertura, tropeçando sobre os próprios pés, e caiu no chão molhado do lado de fora, a respiração ofegante.

Maya rolou no chão úmido, a respiração presa na garganta, os olhos fixos na porta aberta. O velho Sam, com sua lanterna na mão e o revólver erguido, hesitou por um segundo. A criatura, com seu corpo putrefato e membros distorcidos, arrastava-se para fora do necrotério, a escuridão da noite de Veridia parecendo engoli-la e devolvê-la em um pesadelo tangível.

Um grito gutural escapou dos lábios do guarda, um som de puro terror. "O que... o que é isso?!"

Sam, com as mãos trêmulas, disparou. O estampido do revólver ecoou na rua molhada. Uma, duas, três vezes. Os projéteis rasgaram o ar, mas o que atingiram a criatura só pareciam fazer um som abafado, como se acertassem lama densa. As balas afundaram na carne decomposta sem qualquer efeito visível, sem derrubá-la, sem sequer fazê-la vacilar. A aberração continuou sua aproximação lenta, mas inexorável.

Maya tentou gritar para ele correr, para fechar a porta, mas as palavras não saíam. Estava paralisada pelo horror, vendo a cena se desenrolar em câmera lenta.

A criatura estava sobre Sam em um piscar de olhos grotesco. Não houve tempo para o velho guarda reagir. Com um movimento surpreendentemente rápido para sua forma disforme, um de seus membros alongados e distorcidos – que parecia terminar em algo como uma garra feita de osso e tendão – chicoteou no ar e cravou-se no peito de Sam.

O som foi abafado, um estalo úmido que ecoou mais na mente de Maya do que no ar. A garras não só perfurou, mas também rasgou o uniforme e a carne, abrindo um buraco cavernoso no peito do guarda. Os olhos de Sam se arregalaram em uma expressão de agonia e incompreensão, o revólver caindo no chão com um baque surdo.

Não houve tempo para gritos. A criatura puxou sua garra, e o que restava do corpo de Sam tombou para trás, atingindo o chão com um som macabro e final. Mas não parou por aí. A abominação se curvou sobre o cadáver, e Maya ouviu, clara e perturbadora, a sucção úmida, o som de algo sendo extraído, consumido. Era como um animal se alimentando, mas de uma forma que desafiava a natureza, um banquete profano de carne e vida. Ela podia ver a silhueta da criatura contorcendo-se sobre o corpo do guarda, e soube, com uma certeza aterrorizante, que Sam não estava apenas morto; ele estava sendo desfeito, absorvido, sua essência se tornando parte daquele horror.

Um grito finalmente rasgou a garganta de Maya, um som de puro terror que ecoou pela rua deserta de Veridia. Ela se levantou cambaleando, o chão girando, a imagem do horror se gravando a ferro e fogo em sua mente. Precisava correr. Longe dali.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!