Capítulo 4 O som que não se cala.

Amélia não dormiu naquela noite.

Virou-se incontáveis vezes na cama, mas era como se o lençol tivesse se transformado numa teia que a prendia, sufocando qualquer possibilidade de descanso. Seus olhos fitavam o teto, mas o que via, de fato, era o reflexo imóvel daquela figura à beira do lago.

O sorriso.

A fita.

Helena.

Fechava os olhos e o som voltava: o sopro, arrastado, como se a própria noite respirasse sobre sua nuca, esperando o momento certo para se anunciar de vez.

O tic-tac do relógio quebrava o silêncio do apartamento, marcando cada segundo como um lembrete cruel de que o tempo seguia seu curso indiferente ao terror que se aninhava em sua mente.

Levantou-se.

As primeiras linhas da aurora mal haviam riscado o céu, mas ela sabia que não adiantava mais tentar repousar. O apartamento parecia menor, as sombras mais espessas. Havia uma estranha sensação de que não estava sozinha, embora a razão insistisse em negar essa ideia.

Foi até a escrivaninha, onde a fita cassete repousava desde que chegara. Não tivera coragem de tocá-la novamente, muito menos de tentar ouvir seu conteúdo.

Ainda não.

Mas também não podia ignorar.

Sentou-se, encarando o pequeno objeto como quem observa uma criatura viva, silenciosa, porém cheia de intenções ocultas.

De súbito, o telefone fixo tocou, quebrando o silêncio denso do apartamento.

Amélia estremeceu.

Demorou alguns segundos até reunir coragem para atender.

— Alô?

Silêncio.

Por um momento, achou que fosse mais uma alucinação alimentada pelo pavor, mas então, do outro lado, uma respiração fraca se fez presente.

Não um sopro desta vez.

Uma respiração humana, ofegante, como alguém prestes a dizer algo… ou a desistir de tudo.

— Quem está aí? — perguntou, a voz falhando.

Nada.

Só o ar cortado em intervalos desiguais.

Então, uma palavra.

Baixa, arrastada, quase inaudível:

— Corre…

E a ligação caiu.

Amélia ficou ali, com o fone ainda colado ao ouvido, sem saber se o que ouvira fora real ou uma projeção do próprio medo.

Largou o telefone e, como quem age sem pensar, pegou a fita.

Precisava saber o que havia nela.

Vasculhou o apartamento até encontrar o antigo gravador que guardava desde a faculdade, em uma das caixas esquecidas no armário.

Colocou a fita no compartimento, fechou com um estalo seco e apertou o play.

O chiado inicial soou quase reconfortante, como um lembrete de que aquilo era apenas uma gravação, que não poderia machucá-la.

Mas o que veio a seguir…

“Se você está ouvindo isto, é porque ele ainda está aí…”

A voz era de Helena.

Não havia dúvidas.

A mesma entonação calma, mas agora carregada de algo que Amélia não conseguia nomear: talvez desespero, talvez resignação.

“Não tente me encontrar. Não tente entender. Ele escolhe quem quer ouvir… quem quer levar…”

A fita avançava entre pausas longas, cortadas pelo mesmo sopro que a repórter já conhecia, mas que agora parecia mais próximo, mais nítido, como se estivesse dentro do próprio apartamento.

Amélia olhou ao redor, como quem espera encontrar alguém escondido atrás da cortina ou da porta.

Mas estava sozinha.

Sozinha, com aquela voz que viera do além.

Na gravação, Helena continuava:

“O Parque dos Salgueiros… ele não está preso lá. Ele se move… se arrasta… e me encontrou…”

Amélia sentiu um calafrio subir pela espinha.

Então, um ruído abafado.

Algo semelhante a passos… e depois, uma espécie de grunhido, como um rosnado, mas que rapidamente se confundiu com o som característico da fita sendo parada abruptamente.

O gravador emudeceu.

Fim.

Mas não havia fim.

Amélia sabia disso.

O pânico que sentira na noite anterior voltou com força, mas agora havia algo mais: raiva.

Por que aquilo estava acontecendo com ela?

Por que Helena?

E, principalmente… por que aquele ser, aquela coisa, parecia querer tão desesperadamente que ela soubesse de sua existência?

A fita. A ligação. O parque.

Tudo formava um caminho inevitável, como peças de um quebra-cabeça sombrio que alguém, ou algo, montava à sua revelia.

Saiu de casa pouco depois, o céu ainda pálido, as ruas vazias, um cenário que parecia conspirar com o que sentia.

Cada passo parecia ecoar mais do que o normal, e por um instante, teve a impressão de que era seguida, mas, ao virar-se, só encontrou o vazio das calçadas úmidas pela neblina que subia do asfalto frio.

Foi até a redação.

Precisava trabalhar. Ou pelo menos fingir que ainda existia alguma normalidade na sua vida.

Assim que cruzou a porta, o cheiro de café requentado e papel a envolveu, quase como um conforto.

Mas então percebeu.

Todos a olhavam.

Os colegas, os estagiários, até o porteiro: olhos fixos nela, como quem observa alguém que acaba de voltar de um lugar do qual ninguém jamais retorna.

Ela forçou um sorriso, tentando atravessar a redação como sempre fazia, mas logo foi interceptada por Cláudia, sua editora.

— Amélia…

O tom de Cláudia não escondia a preocupação.

— O que foi?

— A polícia… esteve aqui.

O chão pareceu se mover sob seus pés.

— O quê? Por quê?

Cláudia puxou-a para um canto, longe dos olhares curiosos.

— Disseram que alguém ligou para a delegacia esta madrugada, relatando gritos no Parque dos Salgueiros. A patrulha foi até lá e…

Parou.

Engoliu em seco.

— E?

— Encontraram marcas na margem do lago. Rastros. Pegadas… e algo mais.

Amélia arregalou os olhos, o coração disparado.

— O quê?

Cláudia hesitou por um segundo, como se duvidasse da própria sanidade ao dizer:

— Marcas de unhas. Arranhões. Como se alguém… tivesse sido arrastado para dentro da água.

Amélia fechou os olhos, respirando fundo, tentando manter-se firme.

Mas não conseguia.

O sopro estava ali, dentro dela agora, e parecia ganhar força a cada batida de seu coração.

— Eles encontraram algum corpo? — perguntou, com um fio de voz.

Cláudia balançou a cabeça negativamente.

— Nada. Só as marcas. E… eles disseram que havia um som estranho, quando chegaram.

— Som?

— Como um… sopro.

Amélia sentiu o sangue gelar.

E então, como num reflexo inevitável, soube:

Teria que voltar ao parque.

Não importava o risco, nem as histórias, nem as marcas à beira do lago.

Só havia uma forma de calar o som que agora ecoava incessantemente dentro de sua mente.

Enfrentá-lo.

E talvez… só talvez… descobrir, afinal, quem ou o que era o último sopro da noite.

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