Capítulo 3 o parque dos Salgueiros.

O vento parecia guiá-la.

Amélia andava sem perceber, os pés pisando no asfalto frio da madrugada, as ruas da cidade desertas à sua volta. Não sabia ao certo por que havia saído do prédio do jornal, ou por que não ligou para ninguém, ou sequer por que não voltou para casa.

Só sabia que precisava ir até lá.

O Parque dos Salgueiros.

Era como se o nome tivesse sido sussurrado diretamente dentro de sua mente, atravessando todas as camadas de lógica, medo e resistência.

Em sua memória, a gravação se repetia em looping:

“Ele está aqui… ele não me deixa ir…”

E depois, aquela palavra, que a fita não registrara, mas que o arquivo do computador, de alguma forma, trouxera à tona:

“Amélia…”

Nunca se sentira tão sozinha.

A cidade dormia.

Ou talvez estivesse morta há muito tempo, e só ela ainda não soubesse.

Virou a esquina, passando pela velha estação ferroviária, os trilhos enferrujados brilhando sob a luz pálida dos postes. O parque surgia à sua frente, uma mancha escura e amorfa, como se a própria noite tivesse criado raízes ali.

Amélia parou diante do portão de ferro retorcido, hesitando.

Sabia o que diziam sobre aquele lugar.

Desde criança ouvia as histórias sussurradas pelos mais velhos: de que ninguém deveria cruzar seus limites depois da meia-noite; de que o parque era lar de algo antigo, que não aceitava ser perturbado; de que quem entrava sozinho… não saía.

Mas agora estava ali.

Sozinha.

E, apesar do medo, sentia uma estranha inevitabilidade em tudo aquilo.

Empurrou o portão, que rangeu alto, como um grito preso por décadas.

Adentrou o parque.

As árvores altas, os salgueiros retorcidos e cobertos por uma vegetação espessa, formavam arcos sobre o caminho, criando túneis naturais de sombras e penumbra.

Cada passo que dava parecia abafar os sons à sua volta: os grilos calavam, as folhas paravam de balançar, e até o vento parecia recuar, deixando para trás um silêncio opressor, denso, como se o próprio ar tivesse parado de circular.

Amélia segurou o celular com força, mas não havia sinal.

Claro que não.

Seguiu adiante.

O caminho se afunilava, conduzindo-a até o centro do parque, onde, segundo as histórias, havia um lago negro, tão fundo que ninguém nunca conseguira medi-lo.

E foi para lá que seus pés a levaram.

Quando chegou, parou à beira da água parada.

Nenhuma ondulação. Nenhum reflexo. Apenas um espelho opaco, absorvendo toda a pouca luz da noite.

Foi então que ouviu.

Um sussurro.

Baixo, arrastado, vindo de trás dela.

Virou-se bruscamente, os olhos varrendo a escuridão, mas não havia ninguém.

Só o parque.

Só os salgueiros, imóveis, silenciosos.

— Quem está aí? — sua voz saiu fraca, quebrada.

Outro sussurro.

Dessa vez, mais próximo.

E então… o som.

O sopro.

O mesmo que ouvira na gravação.

Longo, frio, quase desumano.

O mesmo sopro que, diziam, precedia o desaparecimento das vítimas do parque.

Seu coração disparou, e pela primeira vez desde que chegara ali, sentiu o pânico verdadeiro se instalar, como um veneno se espalhando pelas veias.

Deu um passo para trás, mas algo a fez parar.

Na margem oposta do lago, entre os galhos retorcidos de um salgueiro, viu…

Uma figura.

Estava imóvel, escura, alta, como um pedaço da própria noite que tivesse se destacado do resto.

Não conseguia distinguir rosto, nem forma clara, apenas a silhueta, parada, olhando-a.

Ou pelo menos era essa a sensação: a de estar sendo observada.

Engoliu em seco, tentando convencer-se de que era só sua mente pregando peças, que tudo aquilo era resultado do estresse, da obsessão por aquela história, da falta de sono.

Mas então a figura se moveu.

Lentamente.

Dando um passo em direção à água.

E o sopro… ficou mais forte.

Amélia recuou mais dois passos, tropeçando em uma raiz exposta e caindo de joelhos.

O celular escapou de sua mão e deslizou pelo chão até sumir entre as folhas úmidas.

Tentou se levantar, mas o frio era tão intenso que suas pernas pareciam não responder.

Então, ouviu.

Uma voz.

Dessa vez, clara.

Feminina.

— “Não me procurem…”

O mesmo apelo da gravação.

Só que agora… ao vivo.

Amélia olhou ao redor, procurando desesperadamente a origem do som, e então, do outro lado do lago, percebeu um detalhe que não notara antes: a figura… tinha cabelos. Longos, escuros, esvoaçantes, mesmo sem vento algum.

E na penumbra, por um segundo, o rosto se revelou.

Não havia dúvidas.

Helena.

Amélia levou as mãos à boca, contendo um grito.

— Helena?!

A figura permaneceu imóvel, e então… sorriu.

Mas não era um sorriso humano.

Era um arqueamento estranho dos lábios, frio, sem alma, como se o corpo soubesse sorrir, mas não o espírito.

E então a figura sussurrou, uma última vez:

— “Ele está aqui…”

E desapareceu.

Assim.

Como uma sombra dissolvida pela própria escuridão.

Amélia ficou ali, ajoelhada, sem conseguir se mover, o coração batendo tão forte que achou que fosse parar.

Olhou para o lago, agora perfeitamente imóvel.

Nenhum vestígio.

Nenhuma marca.

Nada que provasse que o que acabara de ver tinha sido real.

Ou que não tinha.

Com esforço, se levantou, pegou o celular — que agora estava morto, sem bateria — e, tropeçando, começou a correr de volta pelo caminho, sem olhar para trás, sem se importar com os galhos que arranhavam seus braços e rosto.

Só queria sair dali.

Só queria esquecer.

Quando finalmente alcançou o portão do parque, empurrou-o com força, quase caindo para fora, e só parou de correr quando chegou à rua principal, onde as primeiras luzes da cidade já começavam a piscar, frias e indiferentes.

Encostou-se a um poste e ficou ali, respirando com dificuldade, o corpo todo trêmulo.

E então percebeu.

No bolso do casaco, algo que não estava ali antes.

Enfiou a mão e retirou… uma fita cassete.

Sem rótulo.

Sem nome.

Apenas uma fita, antiga, igual àquelas que Helena usava.

Seus dedos tremiam enquanto apertava o objeto.

E uma única certeza se instalava em sua mente:

Ela não tinha terminado de ouvir aquela história.

E agora, talvez, não houvesse mais como parar.

O último sopro da noite ainda pairava sobre ela.

E sobre a cidade.

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Rosa Maria

Rosa Maria

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2025-06-12

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