Capítulo 2 O eco na escuridão.

A noite parecia pesar mais do que o normal quando Amélia atravessou a rua deserta, o casaco apertado contra o corpo, como se pudesse, assim, se proteger do frio que vinha de dentro, não de fora. Atrás dela, o velho prédio do jornal erguia-se como uma carcaça esquecida, com suas janelas quebradas e a fachada corroída pelo tempo.

Era o seu segundo plantão noturno daquela semana — um castigo silencioso que aceitava sem reclamar. Afinal, ninguém além dela parecia disposto a vasculhar os porões empoeirados daquele arquivo morto, atrás de pistas sobre o desaparecimento de Helena Soares.

Helena.

O nome ainda reverberava dentro dela como uma ferida aberta. Não eram amigas próximas, mas Amélia a conhecia: a repórter jovem, ambiciosa, sempre disposta a correr atrás das histórias que todos evitavam. E foi justamente uma dessas histórias que a tragou para o vazio: uma matéria sobre as lendas urbanas da cidade, sobre o Parque dos Salgueiros, sobre um tal de “Homem do Sopro”.

Teria sido só mais uma reportagem sensacionalista, não fosse o fato de que, três dias depois, Helena simplesmente desapareceu sem deixar rastro.

E agora… agora Amélia estava ali, no mesmo lugar, ouvindo as mesmas fitas que Helena gravara nos dias que antecederam o sumiço.

Empurrou a porta do prédio, que rangeu como sempre. O cheiro de mofo e papel velho a envolveu imediatamente, familiar e opressivo. Subiu os degraus lentamente, evitando os que sabia que estavam quebrados, até chegar à redação vazia.

Tudo estava igual: as mesas desorganizadas, a cafeteira esquecida no canto, e o telefone antigo sobre o balcão — o mesmo que, horas antes, tocara no meio da madrugada, quebrando o silêncio e lançando aquele sussurro enigmático ao seu ouvido:

“Não mexa com isso.”

A frase não saía da sua cabeça.

Mas como não mexer?

Como ignorar a gravação que encontrara naquela fita, com a voz de Helena — ou alguém que soava como ela — sussurrando palavras de puro desespero?

Sentou-se à sua mesa e ligou novamente o gravador.

Rebobinou.

Play.

O chiado começou, arrastado, como um vento distante atravessando um campo deserto. Depois, a voz:

“Ele está aqui… ele não me deixa ir…”

E, mais adiante:

“Por favor… se alguém encontrar isto… não me procurem…”

O mesmo calafrio percorreu-lhe a espinha, mas agora Amélia não desligou o aparelho. Deixou que a fita continuasse rodando, mesmo quando apenas o chiado tomava conta do ambiente, como se esperasse que mais alguma coisa se revelasse.

E então, quando já estava quase prestes a desligar, ouviu.

Um segundo som.

Baixíssimo, quase imperceptível.

Rebobinou de novo.

Ouviu com mais atenção.

Não era uma voz.

Era… respiração.

Pesada.

Arrastada.

Como se algo ou alguém estivesse muito próximo do microfone.

Sua pele se eriçou inteira.

Levou um tempo até perceber que estava prendendo a respiração, e soltou o ar, ofegante.

Olhou em volta, como se esperasse ver alguma coisa ali, entre as sombras da redação.

Mas estava sozinha.

Ou assim parecia.

Levantou-se da cadeira e foi até a janela. Lá fora, a cidade era só um borrão de luzes fracas e ruas vazias. O parque, lá longe, uma mancha negra entre os prédios abandonados.

O mesmo parque onde, diziam, Helena fora vista pela última vez.

O mesmo parque onde, segundo as histórias, o “Homem do Sopro” aparecia à noite, quando o vento parava de soprar e o silêncio era absoluto.

Amélia nunca fora de acreditar nessas coisas. Sempre se achou racional demais, cética demais.

Mas desde aquela gravação…

Ajeitou o casaco e decidiu que precisava de ar fresco.

Desceu os degraus rapidamente e saiu para a rua, caminhando sem rumo, os passos ecoando pela calçada vazia. O relógio na praça marcava quase meia-noite.

O Parque dos Salgueiros não ficava muito longe dali.

Por um instante, pensou em ir até lá.

Só para ver.

Só para afastar de vez aquela sensação sufocante.

Mas hesitou.

Lembrou-se da última frase da gravação:

“Não me procurem…”

E agora também da voz ao telefone:

“Não mexa com isso.”

Por que, então, sentia-se como se tivesse que ir?

Deu alguns passos em direção ao parque, mas parou subitamente ao ouvir um barulho atrás de si.

Virou-se, os olhos arregalados.

Nada.

Apenas o vento, que agora parecia ter parado por completo.

Sentiu a pele arrepiar.

Tudo ficou anormalmente silencioso.

Como se a cidade tivesse prendido a respiração junto com ela.

De repente, uma folha seca caiu de uma árvore e o som pareceu absurdamente alto, quebrando o silêncio como um tiro.

Amélia deu um passo atrás, o coração acelerado, e decidiu que era melhor voltar.

Caminhou rapidamente até o prédio do jornal e entrou, trancando a porta atrás de si.

Subiu novamente até a redação, sentindo o peso da noite se tornar ainda mais opressivo, como se a própria escuridão tivesse corpo e presença.

Sentou-se à mesa e pegou o telefone, discando automaticamente o número de Gustavo, seu colega e único amigo ali.

Chamou três vezes até cair na caixa postal.

Pensou em deixar um recado, mas desistiu.

O que poderia dizer?

“Oi, Gustavo, acho que estou sendo seguida por uma lenda urbana?”

Ridículo.

Fechou os olhos por um momento, massageando as têmporas.

Quando os abriu, viu algo que fez seu sangue gelar:

Na tela do computador, que jurava ter desligado antes de sair, agora havia uma janela aberta.

Um arquivo de áudio.

Sem nome.

Só um código estranho de letras e números.

A mão trêmula levou o cursor até o “play”.

O som que emergiu dos alto-falantes foi diferente de tudo que já ouvira.

Não era uma voz.

Não era uma música.

Era… um sopro.

Frio, longo, quase como o último suspiro de alguém que acabou de morrer.

E então, de repente, no meio daquele sopro, uma palavra, quase inaudível:

“Amélia…”

Ela se levantou tão rápido que a cadeira tombou para trás.

O gravador, que estava desligado, ligou-se sozinho e começou a rebobinar.

As luzes da redação piscaram violentamente.

O telefone tocou.

Uma, duas, três vezes.

Amélia, paralisada, não conseguia mover um músculo sequer.

O telefone continuava tocando.

E, do lado de fora, lá longe, no Parque dos Salgueiros, o vento parecia ter voltado a soprar, assobiando entre as árvores como uma gargalhada fria e sem alma.

E ela soube, naquele momento, que não importava o quanto fugisse…

O último sopro da noite já estava sobre ela.

E não iria embora.

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Comments

Rosa Maria

Rosa Maria

Ela é corajosa ir pra redação sozinha e andar nas ruas e parque sozinha,que mistério 😱🥰

2025-06-12

0

Laura Barón

Laura Barón

Adoro esse começo! 😍

2025-06-06

0

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