O Último Sopro da Noite

O Último Sopro da Noite

capítulo 1 o som que veio com a nevoa

A névoa adensava-se como um manto espesso, envolvendo as ruas silenciosas da cidade de Vardem. As lâmpadas amareladas mal conseguiam rasgar a escuridão que parecia se arrastar pelas esquinas, como se algo mais denso do que o próprio ar estivesse se insinuando por entre as paredes, os paralelepípedos e os pulmões de quem ousasse caminhar naquele horário.

Amélia segurava com força o gravador na mão direita, enquanto a esquerda mantinha o celular aberto, com a tela iluminando as notificações não lidas — mensagens de sua irmã, preocupadas, alertando-a para que não saísse à noite. Mas ela já não acreditava em advertências. Não depois de tudo o que vira nas últimas semanas.

O desaparecimento de três moradores do bairro antigo não era coincidência, embora a polícia insistisse na versão de que “eram casos isolados”. Pessoas que “se perderam”, “foram embora” ou “simplesmente sumiram”. Amélia sabia que não era bem assim.

O último deles, Artur Vernaldi, fora visto pela última vez exatamente ali, na entrada do Parque dos Salgueiros, um pedaço esquecido de natureza que resistia ao avanço das construções e do tempo. E era para lá que ela se dirigia agora, sem saber se levava mais medo ou curiosidade na alma.

Os passos dela ecoavam vazios na rua de pedras úmidas. Cada respiração soltava uma pequena nuvem no ar frio. O portão enferrujado do parque rangeu assim que ela o empurrou, e a sensação imediata foi de que cruzava um limite invisível, como quem pisa pela primeira vez em solo amaldiçoado.

O parque parecia abandonado há décadas. Os bancos estavam quebrados, as folhas acumuladas formavam um tapete úmido, e as árvores tortuosas pareciam braços esqueléticos apontando para o céu sem estrelas. E ali, bem no centro, onde o caminho se abria como um pequeno palco de terra batida, ela parou.

Fechou os olhos por um segundo e inspirou fundo, como quem tenta se convencer de que a coragem ainda habita o peito. Ligou o gravador.

— “Primeiro registro, sexta-feira, 23h48. Estou no Parque dos Salgueiros, no exato local onde, segundo a testemunha, Artur Vernaldi foi visto pela última vez. A temperatura está baixa e há muita névoa. Nenhum sinal de movimentação até agora.”

O silêncio respondeu como uma parede. Ela olhou em volta, os olhos tentando furar a escuridão. Nada. Nem um som de grilo, nem o farfalhar das folhas. Apenas um silêncio absoluto, quase palpável.

De repente, um estalo.

Amélia virou-se imediatamente para a esquerda, apontando o feixe fraco da lanterna do celular. O foco iluminou apenas uma árvore espessa, com a casca rasgada como se garras tivessem passado por ali. Ela se aproximou devagar, o coração batendo acelerado, enquanto cada passo afundava na lama fria.

Sobre a casca arrancada, um símbolo: um círculo com um traço cortando-o ao meio, e três pontos dispostos ao redor, como um triângulo imperfeito.

Ela tirou uma foto, com as mãos trêmulas. Nunca havia visto aquele símbolo antes, mas algo nele parecia absurdamente familiar, como uma lembrança escondida na infância, um fragmento de algo que não deveria estar ali.

Quando se virou para voltar, o som.

Um sussurro.

Baixo. Longe, mas próximo o bastante para ela distinguir que não era sua imaginação.

Amélia congelou. Prendeu a respiração e fechou os olhos, como quem tenta se fundir com o ambiente. O sussurro repetiu-se, agora mais claro:

— "Por que você veio…?"

O gravador ainda estava ligado. Ela não ousou responder. Não conseguiu. Apenas ficou ali, estática, com os olhos arregalados e as pernas recusando-se a obedecer.

A lanterna falhou por um segundo, apagando-se e deixando-a completamente envolta na escuridão. Quando a luz retornou, a névoa parecia ainda mais densa, como se o próprio ar tivesse engrossado para sufocá-la.

O sussurro se transformou em algo mais: um som que misturava vento e gemido, correndo entre as árvores, circulando-a, como se dezenas de vozes quisessem dizer algo, mas não soubessem exatamente o quê.

Ela tropeçou para trás, caindo de joelhos na lama. O gravador caiu da mão e, ao tentar recuperá-lo, percebeu: no chão, ao lado do aparelho, uma pegada.

Não era sua.

O tamanho era maior, e o formato… estranho demais para ser humano.

A vontade era gritar, mas a garganta simplesmente não obedecia. Levantou-se com dificuldade, segurando o celular como uma única arma inútil. Deu dois passos para trás e, ao virar-se para correr, parou.

Ali, na entrada do parque, onde antes não havia ninguém, uma figura.

Escura.

Parada.

Como uma silhueta recortada da própria noite.

Ela não conseguia distinguir o rosto, nem os detalhes, apenas a certeza de que era alguém — ou alguma coisa — que a observava com intensidade assassina.

O ar parecia congelar. O tempo, parar.

Então, sem emitir um som, a figura simplesmente desapareceu, engolida pela névoa.

Amélia correu. Não olhou para trás, não se permitiu pensar em nada além de colocar um pé à frente do outro, enquanto o sangue pulsava em seus ouvidos e o coração batia como um tambor desesperado.

Só parou quando alcançou a rua principal, quando as luzes dos postes voltaram a iluminar fracamente o caminho.

Ofegante, olhou para o gravador ainda em sua mão.

Rebobinou o áudio, com dedos trêmulos, e apertou o play.

O registro estava lá, a sua própria voz fazendo a descrição inicial… e então…

O som.

Não apenas o sussurro.

Mas um segundo, bem ao final.

Uma respiração profunda, arrastada, como o último sopro… da noite.

Ela desligou o gravador imediatamente e apertou o aparelho contra o peito, enquanto os olhos se enchiam de lágrimas involuntárias.

Vardem não era mais apenas uma cidade silenciosa.

Era um lugar onde, claramente, a noite tinha algo a dizer…

E ela estava disposta a ouvir.

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Comments

Rosa Maria

Rosa Maria

história eletrizante 😱😱😱🥰🥰🥰

2025-06-12

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