A Sala Sem Portas

Silêncio.

Mas não um silêncio comum, como o de uma floresta à noite ou uma rua deserta. Era um silêncio absoluto, esmagador, como se todo e qualquer som tivesse sido apagado do universo. Nenhum eco, nenhum batimento cardíaco – nem mesmo a sua própria respiração podia ser ouvida, apenas sentida como uma leve pressão nos pulmões. Lucas flutuava, ou melhor, estava suspenso entre o nada e o quase-nada. Um espaço branco, infinito, onde o tempo e a gravidade pareciam ter desistido de existir. Não havia cima nem baixo, apenas a sensação de estar imerso em um limbo etéreo.

Seu corpo, de repente, tocou um chão que não parecia sólido, mas o sustentava com uma estranha maciez. Ele abriu os olhos devagar, as pálpebras pesadas, e se viu em uma sala cúbica. As paredes eram de concreto liso, de um tom cinza pálido, mas sem rachaduras, sem sujeira, sem o mofo ou a decadência do mundo lá fora. Era um espaço de uma perfeição clínica, diferente de tudo naquele apocalipse de poeira e ferrugem. O ar ali cheirava a hospital, a antisséptico, a uma memória distante de higiene e esterilidade, a alguma coisa que ele não conseguia nomear, mas que evocava uma nostalgia dolorosa.

No centro exato da sala, uma mulher.

Sentada rigidamente em uma cadeira metálica, ela mantinha os olhos fechados, as mãos repousando sobre os joelhos em uma postura de meditação ou resignação. Seus cabelos escuros estavam presos em um coque apertado, e ela vestia um jaleco branco, tão imaculado quanto papel novo, que contrastava com a sua pele pálida. Um crachá pendia discretamente de seu pescoço, e Lucas, com uma pontada de reconhecimento, leu o nome familiar: Dra. Lúcia G. Ferraz.

Lucas engoliu em seco, a garganta seca. A mulher dos cadernos. A responsável pelas anotações que desvendaram parte da loucura em que ele estava preso.

"É... você? A do caderno?", Lucas perguntou, a voz quase um sussurro no silêncio opressor.

Ela abriu os olhos lentamente, revelando íris de um azul penetrante e uma expressão que parecia não se surpreender, como se já esperasse por ele há muito tempo. Um leve e triste sorriso surgiu em seus lábios finos. "Sim. Sou eu. E você chegou mais rápido do que imaginei. Ou... mais tarde. É difícil dizer, considerando o seu estado."

"Meu estado?", Lucas perguntou, sentindo um arrepio.

"Você está quebrado, Lucas. Fraturado entre versões. Saltando entre linhas de tempo como se fosse um pedaço solto da realidade, preso em um ciclo de repetição e esquecimento. Este lugar te puxou para te conter, para te dar uma chance."

Ele avançou um passo em sua direção, a urgência crescendo. "O que é este lugar? E por que eu estou aqui?"

"Uma sala de contenção", respondeu Lúcia, sua voz calma e medida. "Um espaço fora do tempo, criado para receber consciências instáveis como a sua, Lucas. Ou melhor, como todas as suas. Aqui, você pode entender – se quiser. Pode ver a verdade sem a distorção do ciclo."

O relógio em seu pulso, que havia ficado em silêncio desde a queda, brilhou com um tom dourado, suave, mas intenso. Não exibia números, nem datas. Apenas uma única palavra, formada por luz: ACESSO. Era como se o relógio reconhecesse aquele lugar, aquela mulher.

A parede lisa atrás da Dra. Lúcia se iluminou subitamente, transformando-se em um painel translúcido, como um vidro gigante. Nele, uma miríade de imagens começou a piscar e se sobrepor, em um fluxo constante que contava uma história perturbadora. Lucas reconhecia cada uma: a rua destruída, a casa intacta e sua perfeição assustadora, ele mesmo – dormindo, correndo, chorando em versões ligeiramente diferentes. Havia dezenas de "LUCAS", cada um posicionado em um ponto diferente de uma linha torta e fragmentada. Alguns viviam, outros morriam, outros existiam apenas como ecos.

"O que... é isso?", Lucas murmurou, a visão uma tortura para seus olhos.

"Fragmentos de você", explicou Lúcia, sua voz agora mais grave. "De todos os 'vocês' que surgiram quando o tempo quebrou. A fenda original começou com o relógio, sim. Mas a fonte... é mais profunda, mais antiga. O tempo não se partiu em uma só rachadura, Lucas. Ele se estilhaçou em infinitas possibilidades. E cada uma delas é uma versão sua, vivendo e morrendo em um loop particular."

Lucas encarava as imagens, a cena mais perturbadora do que qualquer inferno que vira lá fora. Uma versão sua com uma arma em punho. Outra, mais velha, com barba e cicatrizes, o olhar endurecido. Uma que parecia incrivelmente cruel, fria, distante, sorrindo para a destruição. Aquelas eram todas ele? Partes de seu próprio ser?

"Eu sou todas essas versões?", ele perguntou, o nó na garganta quase impedindo as palavras de sair.

"Ainda não", disse Lúcia, a voz cheia de um pesar antigo. "Mas será. Ou já foi. O colapso temporal não destrói as versões, Lucas. Ele as mistura. Elas estão se fundindo, uma a uma, em você. Por isso as memórias, os sonhos, os 'reinícios'. Você está absorvendo todos os ecos de si mesmo. E há um que está se alimentando disso."

Antes que Lucas pudesse questionar, as luzes da sala começaram a falhar, piscando em um ritmo errático. O cheiro de hospital deu lugar a um odor acre, metálico, quase de ozônio queimado. A perfeita superfície do concreto tremeu.

Uma rachadura negra, como uma ferida aberta na própria realidade, atravessou o teto da sala de contenção. Dela, escorreu uma sombra líquida, espessa como tinta viva, que se espalhou pelo concreto, formando padrões disformes. E então... olhos. Vários. Centenas deles. Espalhados pela massa escura que se contorcia, abrindo-se lentamente, pupílas escarlates pulsando com uma fome que não era humana, uma fome que parecia consumir o próprio tempo.

"O que é isso?!", Lucas gritou, recuando, o pânico tomando conta de seu corpo.

"Aquilo que está acordando", Lúcia respondeu, sua voz agora tensa, mas ainda controlada. "A Entidade por trás das rachaduras. Aquele que dorme entre os ciclos, se alimentando das falhas e dos reinícios. O nome dele é esquecido há gerações, mas a Ordem, a mesma que tentou consertar o tempo, o chamava de O Primeiro Eco."

O chão tremeu violentamente. O relógio no pulso de Lucas disparou um som agudo e ensurdecedor, que o fez cair de joelhos, as mãos na cabeça. A sala começou a ruir, não por desabamento físico, mas como se estivesse sendo sugada para dentro de si mesma, distorcendo-se, implodindo.

"Você precisa correr, Lucas! Não para escapar, mas para entender!", Lúcia gritou, sua voz se misturando ao rugido da destruição. "Volte à casa onde tudo começou! É a âncora do seu ciclo. O relógio mostrará o caminho! Ele te guiará para a origem da fenda!"

Lucas tentou perguntar mais, implorar por uma explicação, mas não houve tempo. A sala desabou sobre si mesma, engolindo a luz, o som e a própria Dra. Lúcia em uma explosão de escuridão.

Ele acordou ofegante, deitado no chão de sua própria casa, o corpo suado e tremendo. O quarto estava distorcido, os móveis flutuando a centímetros do solo, como se o tempo estivesse em pausa, ou como se a realidade fosse uma gelatina instável. O cheiro de mofo e sangue seco era avassalador novamente. O menino Lucas dormia no canto, com o rosto estranhamente calmo, como se nada tivesse acontecido.

Lucas se arrastou até a sala, a respiração pesada. O espelho que antes havia sido consertado, agora trincou novamente, uma rachadura fina, mas visível, atravessando sua superfície.

E pela rachadura, um rosto apareceu.

Seu rosto. Mas mais velho. Mais pálido. Com os olhos... negros como a fenda que consumia o teto da sala de contenção. A voz, que vinha diretamente de sua mente, era fria e sem emoção, mas carregada de uma estranha autoridade:

"Você está quase pronto", disse o reflexo. "Quase pronto para a verdadeira escolha. Mas não esqueça: se hesitar no final, ele vence. E quando ele vencer... não haverá mais amanhãs."

"Quem... é 'ele'?", Lucas perguntou, aterrorizado, a voz mal saindo de sua garganta.

O reflexo sorriu. Um sorriso sombrio, que não atingiu os olhos.

E desapareceu.

Na parede ao lado, onde antes havia apenas sujeira, as palavras começaram a se formar com uma tinta escura, quase como sangue:

2030.00.01 - INTEGRAÇÃO INICIADA

Lucas respirou fundo, as lágrimas escorrendo pelo rosto. O relógio em seu pulso permaneceu em silêncio. A data 2050 ainda era exibida, mas por um instante, ele jurou ter visto o brilho fantasma do 2030. Ele sabia, de alguma forma inata e aterrorizante, que estava chegando perto da verdade.

Mas a verdade... a verdade poderia ser o fim de tudo. Inclusive dele.

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