Ecos em Espiral

Lucas não sabia mais quanto tempo havia passado desde que vira... ele mesmo. As horas haviam se dissolvido em uma névoa indistinta de insônia e paranoia. O relógio em seu pulso, aquele artefato enigmático que parecia ser a chave e a prisão de sua existência, estava em um silêncio perturbador. Nenhum brilho. Nenhuma mensagem. Apenas a presença fria do metal contra sua pele, um silêncio que ele sabia ser apenas uma trégua. Um sussurro antes do próximo grito.

Sentado no telhado da casa que um dia fora seu lar, agora um ponto de observação precário, Lucas olhava para o horizonte. O céu parecia uma pintura inacabada de um artista enlouquecido: manchas vermelhas escuras se misturavam a tons de cinza doentio, nuvens estáticas pairavam imóveis, e uma aurora esverdeada, irreal e fantasmagórica, pulsava sem fazer o menor sentido. A cidade, aos poucos, parecia se dobrar sobre si mesma, como um origami cansado de existir, suas estruturas se contorcendo e cedendo, como se o tecido da realidade estivesse se desfazendo sob uma pressão invisível.

Foi então que seus ouvidos, aguçados pela constante ameaça, captaram passos. Rápidos, leves, vindo do beco ao lado da casa, que terminava em um muro desmoronado. Lucas desceu do telhado com cautela instintiva, agarrando um cano enferrujado que usava como arma improvisada, seu coração batendo forte contra as costelas. Ao virar a esquina, viu-a: uma figura encapuzada, parada diante do muro rachado da casa vizinha.

A figura era alta e esguia, envolta em um manto escuro que parecia absorver a pouca luz ambiente. Não era possível distinguir seu rosto, apenas a sombra profunda que se projetava do capuz. O ar ao redor dela parecia denso, como se o próprio tempo hesitasse em sua presença.

"Quem é você?!" Lucas gritou, a voz rouca, tentando soar mais confiante do que realmente se sentia.

A figura não respondeu. Em vez disso, estendeu uma mão pálida de dentro do manto. Nela, um papel. O gesto foi lento, quase convidativo, mas carregado de uma estranha autoridade. Lucas hesitou. Seria uma armadilha? Uma miragem criada pelo ciclo? A paranoia que o consumia o impedia de confiar em qualquer coisa. Mas a curiosidade era um fogo que ardia mais forte.

Ele se aproximou com cuidado, os olhos fixos na mão estendida, pronto para reagir a qualquer movimento brusco. Pegou o bilhete. Estava dobrado em quatro partes, e ao abri-lo, a caligrafia trêmula e apressada lhe era dolorosamente familiar – a mesma que lera nos cadernos da Dra. Lúcia.

"O tempo está em loop. Mas não para todos. Alguns têm o dom de lembrar o que esqueceram. Você é um deles. Volte ao lugar onde tudo começou. Use o relógio às 03:03. Se falhar... ele acordará."

Lucas levantou os olhos, mas a figura havia desaparecido. Não houve som, nem fumaça, nem movimento. Simplesmente não estava mais ali. Como se nunca tivesse estado, ou como se tivesse se desfeito em partículas invisíveis. A velocidade e a forma de seu desaparecimento o deixaram ainda mais aturdido.

"Voltar ao lugar onde tudo começou..." Lucas murmurou para o vazio, o bilhete amassado na mão. Mas o que isso significava? A casa perfeita que ele havia invadido? O primeiro colapso do mundo? O dia em que sua vida se transformou em pesadelo? A cada resposta que encontrava, mais perguntas surgiam, formando uma teia intrincada.

Ele voltou correndo para casa, os passos apressados, a cabeça zumbindo com as palavras do bilhete. O garoto Lucas estava sentado no chão da sala, absorto, desenhando em um pedaço de papel rasgado. Eram desenhos infantis, coloridos com lápis de cera desgastados, mas havia algo profundamente perturbador neles. Símbolos que Lucas reconhecia dos cadernos da Dra. Lúcia, rachaduras que se abriam no papel, figuras borradas com olhos vazios.

"O que você está desenhando?", Lucas perguntou, sua voz um pouco mais tensa do que o normal.

"O sonho que tive", respondeu o menino, sem tirar os olhos do papel. "Tinha uma escada que descia pra dentro da terra. E um som... como se alguém sussurrasse meu nome lá embaixo. O tempo todo. 'Lucas... Lucas...'"

Lucas sentiu um arrepio gélido e prolongado subir pela espinha, os pelos de seus braços se eriçando. Aqueles desenhos eram perturbadoramente precisos, e a descrição do sussurro ecoou com a própria voz distorcida que ele havia ouvido. "Você... já teve esse sonho antes?"

O menino sacudiu a cabeça. "Não. Mas ele me disse que eu teria. O homem com o rosto igual ao seu."

Naquele exato instante, o relógio em seu pulso vibrou. Não apenas um pulso, mas uma vibração forte, constante, que ressoou por todo o seu braço. A tela acendeu, exibindo os números que o bilhete havia mencionado: 03:03.

Lucas, agindo por um impulso incontrolável que parecia não ser inteiramente seu, girou o relógio. Um clique sutil ressoou no ar, quase inaudível, seguido por um estalo seco e alto, como um osso quebrando. E então... tudo tremeu.

O chão sob seus pés se partiu em fragmentos invisíveis, não físicos, mas sensoriais, como se a própria estrutura da realidade estivesse se esfarelando. As paredes sumiram, desintegrando-se em névoa. O céu virou um túnel distorcido de espelhos partidos, cada estilhaço refletindo uma versão quebrada da casa, do mundo, de si mesmo. E ele caiu.

Caiu. Por segundos que pareceram séculos, um mergulho vertiginoso no vazio, sem gravidade, sem direção, apenas a sensação de estar sendo puxado para o fundo de um abismo temporal. A voz do garoto Lucas se misturou com os ecos do seu próprio nome, perdidos no turbilhão.

Até que pousou. De pé. Em um corredor estreito de concreto cinza, úmido e frio. O ar cheirava a mofo e a algo metálico, quase elétrico. As paredes eram nuas, sem fotos ou janelas, apenas concreto bruto que parecia se estender infinitamente. Ao fundo, uma porta solitária se destacava, feita de um metal pesado e escuro. Em sua superfície, um símbolo gravado: um círculo cortado por três linhas verticais.

Lucas reconheceu o símbolo. Estava na caixa do relógio que encontrara na casa intacta. E nas anotações rabiscadas da Dra. Lúcia. Era a marca da Ordem.

Ao se aproximar da porta, um murmúrio de vozes, abafado, mas claramente audível, vazou por debaixo dela. Eram vozes masculinas, sussurrando com urgência:

"...a convergência está próxima. Ele ainda não entende, mas precisa entender. O ciclo está se fechando." "Ele ainda não entende. Mas logo vai lembrar... quem ele realmente é."

Lucas segurou a maçaneta fria e pesada. Respirou fundo, o coração batendo com força no peito, pronto para o que viesse. E abriu.

Do outro lado... estava a si mesmo. De novo. Mas dessa vez... uma versão mais velha, mais abatida. O rosto endurecido pelas privações, marcado por uma barba rala e cicatrizes finas que não estavam ali antes. Um olhar de alguém que já havia perdido tudo e sobrevivido para contar a história, mas que já não se importava em contá-la. Ele estava parado, observando Lucas com uma intensidade que parecia ver através de sua alma.

"Então você chegou até aqui", disse o outro Lucas, a voz grave, cansada, mas com um eco de familiaridade que arrepiou Lucas.

"Quem... quem é você?", Lucas perguntou, a voz fraca, mal reconhecendo-a como sua.

"Eu sou o que você vai se tornar... se continuar fugindo", respondeu o Lucas mais velho, dando um passo à frente.

"Fugindo de quê?"

"De quem você realmente é. E do que você fez."

O chão tremeu violentamente. Não era um tremor distante, mas algo que vinha de dentro das próprias paredes do corredor. O relógio no pulso de Lucas apitou com uma violência ensurdecedora, sua luz explodindo em pulsos dolorosos. A realidade oscilou como uma chama prestes a se apagar, as paredes do corredor se distorcendo, o metal da porta gemendo.

"Ele está acordando...", disse o outro Lucas, a voz agora carregada de urgência e um medo profundo. "E quando acordar... não haverá mais recomeços. O ciclo vai se tornar uma prisão sem saída. A chance é agora."

Lucas quis perguntar quem era "ele", o que ele faria, o que significava a "chance". Mas não houve tempo.

Tudo ficou branco. Uma luz cegante e avassaladora que consumiu o corredor, o outro Lucas, e a si mesmo.

E então... silêncio. Um silêncio que parecia conter todas as perguntas do universo.

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