O despertar veio, não com o som familiar do mundo lá fora, mas com o pulsar insistente do relógio em seu pulso. Não um tique-taque mecânico, nem um alarme vibrante, mas um batimento rítmico, como um coração ansioso martelando contra sua pele. Suas luzes internas vibravam no escuro do quarto, projetando sombras geométricas e dançantes nas paredes rachadas. Lucas piscou, a mente turva, tentando entender se ainda era a escuridão da noite ou se o dia já havia começado lá fora – mas a janela parecia mostrar ambos ao mesmo tempo: um céu cinzento, dividido em manchas de luz e trevas que se contorciam, como uma pintura abstrata.
O garoto Lucas ainda dormia profundamente no canto do quarto, o rosto calmo, alheio ao tormento que se desenrolava no pulso do outro Lucas. O contraste entre a paz do menino e a crescente agitação de sua própria mente era perturbador.
De repente, as palavras surgiram no visor do relógio, brilhando com uma intensidade cruel por apenas um segundo antes de sumirem, como se nunca tivessem existido:
"Não confie nele."
A mensagem o atingiu como um soco no estômago, tão visceral quanto a dor física. O quê...? Lucas piscou, sacudindo a cabeça, tentando clarear a visão, mas as palavras haviam desaparecido sem deixar vestígios. Por um instante, sentiu um impulso avassalador de arrancar o relógio do pulso, de jogá-lo longe, de se livrar daquele peso enigmático. Mas algo – talvez o medo do desconhecido, talvez uma curiosidade mórbida que o prendia àquela nova e terrível realidade – o impediu.
A casa parecia mais silenciosa do que o normal, um silêncio denso e opressor que Lucas começava a associar com a anormalidade. Silêncio demais. Ele se levantou, os músculos tensos, e andou com cautela pelos corredores, seus passos ecoando no vazio. E então, notou. As paredes haviam mudado. Havia fotos que não estavam lá antes – retratos de famílias desconhecidas, paisagens serenas que não combinavam com o cenário apocalíptico lá fora. Um espelho, que antes estava quebrado, agora parecia mais novo, intacto, refletindo um rosto que parecia o seu, mas com uma estranha frieza. Uma planta seca na noite anterior, um emaranhado de galhos mortos, agora florescia vigorosamente, suas pétalas vibrantes e cheirosas como se fosse primavera.
"Algo está errado com o tempo", sussurrou Lucas, a voz um fio, o suor frio escorrendo por sua testa. A sensação de que a realidade estava desmoronando ao seu redor, pedaço por pedaço, era quase insuportável.
No quarto ao lado, que antes estava vazio, Lucas encontrou uma caixa velha, de madeira escura e empoeirada, escondida sob tábuas soltas do chão. Ele a puxou com dificuldade, a tampa rangendo ao ser aberta. Dentro, havia cadernos com páginas amareladas, finas e frágeis, folhas soltas com anotações frenéticas e pedaços de jornais antigos colados com fita adesiva desgastada. Letras trêmulas em tinta azul, quase desbotadas pelo tempo, preenchiam as páginas, contando uma história que parecia se desdobrar diretamente de seus pesadelos:
"Tudo começou com as fendas. Elas não estão nos céus, como muitos pensam... estão no tempo. A própria realidade colapsa de dentro pra fora, desfiando-se como um tecido velho. As pessoas acham que é guerra, doença, aquecimento global, o fim do mundo como o conhecemos. Mas não é. É o tempo que está quebrando, se fragmentando, se repetindo em ciclos sem fim. Estamos todos presos em um loop, condenados a reviver o fim, sem nunca aprender com ele."
A assinatura no final da página, em uma caligrafia um pouco mais firme, dizia apenas: Dra. Lúcia G. Ferraz. Lucas lembrou-se do nome, da mulher na "sala de contenção", aquela que disse que ele estava "fraturado entre versões". As peças começavam a se encaixar, mas a imagem que se formava era de um quebra-cabeça de terror.
Uma anotação solta, escrita em vermelho vibrante, parecia ter sido feita durante um momento de desespero, a tinta borrada como se as palavras tivessem sido escritas às pressas:
"O Relógio é um marcador. Um guia. Mas também é uma chave. A chave para a prisão, para a liberdade... ou para a destruição."
Lucas folheou os cadernos com as mãos tremendo, a adrenalina o mantendo em alerta. Mais adiante, em uma letra que parecia quase suplicar, lia-se:
"Vi um menino ontem. O mesmo rosto, o mesmo nome. Ele está em looping, sem saber. Mas vai saber. Ele é parte da solução... ou do problema."
A paranoia o atingiu com força. O menino Lucas. O mesmo rosto. O mesmo nome. "Não confie nele." A mensagem do relógio ecoou, agora com um peso aterrorizante. Ele olhou para o quarto, onde o garoto ainda dormia inocentemente, e uma pontada de desconfiança fria perfurou seu peito. Seria ele uma ameaça? Uma parte daquela loucura que o perseguia?
Um estalo alto ecoou na sala, arrastando Lucas para fora de seus pensamentos perturbados. Ele virou-se, assustado, o corpo tenso. O sofá, que antes estava em um ângulo reto, agora estava torto, inclinado de forma estranha, como se tivesse sido empurrado com violência. A cortina da cozinha tremia sem vento, balançando de um lado para o outro. Um prato caiu da prateleira sozinho, com um som seco, rachando em três partes perfeitas no chão. E por um segundo, apenas um segundo, Lucas jurou ter visto uma sombra escorregar no teto, movendo-se como uma rachadura viva na própria realidade, um rasgo escuro que se abria e se fechava em um piscar de olhos.
O tempo estava escorregando, e Lucas sentia isso em seus ossos. A casa, antes um refúgio, agora parecia um campo minado de anormalidades.
Ele correu de volta para o quarto, seu coração martelando, e viu o garoto Lucas acordado, olhando para ele com olhos arregalados, a expressão sonolenta. "Tudo bem?", perguntou o menino, a voz baixa, quase um sussurro.
Lucas hesitou, a mensagem do relógio "Ele já esteve aqui antes" queimando em sua mente. Deveria confiar no menino? O que ele sabia? O que ele era? "Tá sim... só... acho que dormi demais."
"Que dia é hoje?", perguntou o garoto, com uma simplicidade infantil que, naquele momento, soou como a pergunta mais complexa do universo.
A pergunta o paralisou. A boca de Lucas se abriu, mas nenhuma palavra saiu. Ele não sabia. Não fazia ideia. A percepção o atingiu com a força de um raio: ele havia perdido a noção do tempo. Os dias se misturavam, as horas se embaralhavam. O mundo era um borrão de presente, passado e futuro.
Desesperado por ar, por qualquer coisa que fizesse sentido, Lucas saiu para respirar ar fresco. As ruas estavam estranhamente quietas, um silêncio sepulcral que não pertencia ao caos que ele conhecia. Um vento gélido cortava as construções em ruínas, trazendo com ele o cheiro metálico da ferrugem e do esquecimento. Era uma quietude que gritava.
E foi então que ele viu.
Do outro lado da rua, parado entre duas sombras longas que se estendiam dos prédios demolidos, um homem o observava. O mesmo rosto de Lucas. Os mesmos olhos. Mas com uma barba por fazer, cicatrizes profundas e linhas de expressão que denunciavam uma vida de sofrimento e conhecimento. Ele não era mais um garoto. Era um homem cansado, marcado pela guerra do tempo.
Eles se encararam por longos segundos, o Lucas mais novo congelado pelo medo e pelo choque, o coração disparado em seu peito. O outro Lucas – sua própria versão do futuro? – apenas acenou com a cabeça, um gesto lento e pesado, como quem diz: "Agora é com você. A decisão é sua."
E então, ele desapareceu. Não em uma explosão de luz ou fumaça, mas de forma gradual, desfazendo-se em partículas de ar e sombra, como se nunca tivesse estado ali, mas ao mesmo tempo, sempre estivesse.
Lucas caiu de joelhos, ofegante, a cabeça girando, a mente em frangalhos. O relógio, antes pulsante, agora estava em um silêncio assustador, mas a tela brilhava com uma nova e terrível inscrição:
2030.00.00 - REINÍCIO INICIADO
Um reinício. Uma falha. Ele estava preso. E a verdade... a verdade estava apenas começando a se revelar.
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Atualizado até capítulo 25
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