Esperança

O despertar foi um sobressalto, mas não para a realidade gélida do colchão sujo. Em vez disso, Lucas abriu os olhos para um quarto banhado em luz dourada. As paredes, antes úmidas e rachadas, estavam impecavelmente limpas, adornadas com pôsteres de seus animes favoritos. O som distante de risadas infantis e o cheiro inconfundível de bolo fresco preenchiam o ar, uma fragrância tão poderosa que parecia um portal para um passado que ele jurava ter perdido. Ele piscou, confuso, o corpo leve, livre da dor e da fome. Estava de volta em casa... mas não na mesma casa. Era como se o apocalipse fosse apenas uma lembrança distante, um pesadelo da qual ele finalmente havia escapado.

Sua mãe surgiu na porta do quarto, um sorriso doce e acolhedor iluminando seu rosto, os olhos brilhando com o mesmo amor que ele tanto lamentava. "Filho, já passou da hora", ela disse, a voz melodiosa, ressoando nos corredores como uma melodia há muito esquecida. "Larga um pouco esse celular e vem comer um pedaço de bolo. Fiz agora, está fresquinho."

Lucas congelou. A imagem dela, viva, ali, diante dele, era demais para suportar. Seus olhos se encheram de lágrimas que queimavam, um rio que ele pensou ter secado. Correu e a abraçou com uma força desesperada, como se temesse que ela se dissolvesse a qualquer segundo, voltasse para o limbo de onde viera. Enterrou o rosto em seu ombro, o cheiro de lavanda preenchendo seus pulmões. "Me perdoa, mãe... por não ter escutado, por não ter estado presente... me perdoa..." As palavras saíram abafadas, uma confissão de todas as falhas e arrependimentos de uma vida inteira.

Mas então, uma voz cortou o momento, não da sua mãe, mas sussurrando diretamente em sua mente, um eco seco e inabalável que perfurava a ilusão:

"Não acredite em tudo que vê. Este mundo é imperfeito. E você... você pode mudá-lo."

A voz não era cruel, mas era fria, uma agulha de consciência perfurando o véu de uma felicidade forjada. Lucas sentiu o calor do abraço materno diminuir, o cheiro de bolo se dissipar. A luz dourada do quarto tremulou, as cores se desbotando para tons de cinza e marrom.

Lucas acordou de novo, dessa vez para a frieza do colchão sujo, no quarto escuro e abafado. O cheiro de mofo e sangue seco retornou como um soco no estômago, um lembrete brutal e inegável da realidade. Estava de volta ao seu inferno particular – se é que aquilo podia ser chamado de real.

Sua mão ainda sangrava, a dor fantasma em sua perna persistia, e o relógio misterioso, que antes pulsava suavemente, agora piscava em um padrão frenético e errático. Na tela, uma data brilhava com uma intensidade alarmante: 2050. A cada piscar, a luz se tornava mais forte, quase dolorosa, e a data mudava, saltando entre anos e números incompreensíveis antes de voltar para o 2050.

"Esse troço tá quebrado..." Lucas murmurou, tentando ignorar o incômodo que se transformava rapidamente em um medo gélido.

Preparou uma refeição improvisada com o que restava em sua sacola: uma bolacha ressecada e um gole de água morna. Era um banquete, considerando os padrões daquele mundo em ruínas, mas a dor em seu peito era maior que a fome. Ao olhar pela janela, percebeu que o caos lá fora havia diminuído mais uma vez. Os gritos eram esporádicos, os tiros mais raros. Era sua chance de buscar mais suprimentos, principalmente água potável.

Antes de sair, o relógio brilhou novamente, dessa vez com uma violência que o fez cambalear. Sua visão escureceu por instantes, e em sua mente surgiram imagens fragmentadas e um número repetido em cada canto da consciência, como um mantra infernal: 2030. 2030. 2030. Ele se segurou na parede, a respiração presa na garganta.

"Eu tô... ficando louco?" Ele sacudiu a cabeça, os cabelos sujos grudando na testa. Não havia tempo para delírios. Precisava de água.

Caminhou até o posto de gasolina abandonado mais próximo, o corpo tenso, os sentidos em alerta máximo. Ao se aproximar, viu uma figura adolescente agachada, enchendo duas garrafas com água pura que escorria lentamente de uma torneira enferrujada. Água pura. Ouro líquido naquele inferno.

O primeiro instinto de Lucas foi atacar, roubar. O segundo, implorar. Mas algo, talvez a exaustão ou a lembrança de seu próprio desespero, o fez optar por negociar. "Ei... você quer trocar uma dessas por comida? Tenho algumas bolachas em casa."

O garoto se encolheu, tenso, as garrafas apertadas contra o peito. Ele parecia uma versão mais jovem de Lucas: assustado, desconfiado, com roupas em farrapos e um olhar de quem já tinha visto demais. "Água é mais valiosa que comida", ele respondeu, a voz embargada pelo medo e pela fome. "Você sabe disso. Sem ela, o mundo ficou assim."

Lucas engoliu seco. A inocência no rosto do garoto, misturada à sua sabedoria cruel sobre o mundo, atingiu-o. "Pode me seguir", Lucas disse, estendendo a mão para um gesto de trégua. "As bolachas estão num lugar seguro. A gente vai rápido, antes que a confusão volte."

O adolescente hesitou por um longo momento, os olhos fixos na mão estendida de Lucas, procurando por qualquer sinal de traição. O silêncio tenso pairou entre eles, quebrado apenas pelo vento que sussurrava entre as ruínas. Finalmente, com um aceno quase imperceptível, o garoto assentiu e seguiu Lucas, mantendo uma distância cautelosa.

Correram pelas ruas desertas, desviando de escombros, buracos e cadáveres inchados que jaziam como marcos de um tempo esquecido. Ao menor sinal de gritaria, de um ruído suspeito vindo de becos escuros, eles apressavam o passo, os pulmões ardendo, o medo impulsionando-os. Ao chegarem à casa de Lucas, ele trancou a porta com a pouca força que lhe restava e respirou aliviado, escorregando para o chão.

"Pode dormir aqui, se quiser. Quando o caos começa, nunca sabemos quando termina." Lucas ofereceu, o gesto de bondade soando estranho até mesmo para seus próprios ouvidos.

"Meu nome é Lucas", disse o garoto, a voz baixa, quase um sussurro.

O Lucas mais velho empalideceu, o sangue escoando de seu rosto. "Como assim... o mesmo nome?" O choque, misturado a uma estranha familiaridade, o atingiu em cheio.

"Você... tem alguém? Família?" perguntou Lucas, o anfitrião.

O garoto sacudiu a cabeça. "Não. Só eu. Me criei sozinho. Nunca conheci meus pais. Uma senhora me criou e me disse que... o mundo não é o que parece."

"Como assim?" Lucas sentiu um arrepio subir pela espinha. As palavras da voz em sua mente voltaram: "Não acredite em tudo que vê. Este mundo é imperfeito."

"Ela disse que tudo isso... pode ser só um sonho."

Lucas não soube o que responder. Apenas entregou as bolachas, e os dois ficaram um tempo em silêncio, mastigando a comida seca, sentindo o estranho conforto da companhia. Pela primeira vez em muito tempo, Lucas se sentiu menos sozinho. Havia outro "ele", outro Lucas, em um mundo de milhões, e isso, de alguma forma, era uma esperança frágil.

Mas então... o relógio brilhou novamente.

Não era um brilho suave. Era uma explosão de luz ofuscante, branca e violenta, que se projetou do seu pulso para preencher o quarto. O ar estalou com uma energia estática e vibrante.

O tempo parou.

Literalmente.

Não de forma metafórica. O mundo congelou. Tudo ficou em suspensão. O movimento das partículas de poeira no ar. Os sons distantes da cidade. Até mesmo a respiração do garoto Lucas, que estava a poucos metros dele. Lucas tentou gritar, mas sua voz não saía, aprisionada na garganta. Ele tentou tocar o outro garoto, mas sua mão atravessou a pele como se fosse ar, sem nenhuma resistência. O mundo estava congelado, mas Lucas estava estranhamente fora dele, um espectador invisível.

E então, a palavra ecoou, não no ar, mas diretamente em sua mente, um som oco e perturbador: "2030..." E com ela, uma silhueta. Era alta, distorcida, feita de sombras e rachaduras, flutuando no fundo de sua mente. Tinha olhos onde não deveria haver olhos, e esses olhos pulsavam com uma luz escarlate. O terror o dominou.

E então tudo ficou escuro.

Lucas acordou, ofegante, no mesmo canto sujo da casa, o corpo pesado, o coração martelando no peito. O relógio em seu pulso estava apagado, silencioso. Correu até o garoto.

"Lucas?! Está bem?!"

O menino piscou, confuso. "Tô sim... por quê?"

"Nada", Lucas recuou, a voz embargada, os olhos fixos no rosto do outro Lucas. "Nada aconteceu?"

"Não... por quê?"

Lucas se afastou, respirando fundo, as mãos tremendo. Nada fazia mais sentido. Os limites entre o real e o irreal haviam se desfeito. A falsa realidade, o tempo parado, a silhueta, as vozes, o ano 2030... Estaria mesmo ficando louco? Ou... estaria começando a despertar para algo muito maior? E o que diabos era aquele relógio? Ele o largou, e o relógio não se quebrou, apenas vibrou e se fixou na data 2050 novamente. Um lembrete frio e constante de que ele era uma peça em um jogo que ainda não compreendia.

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