Relógio do Fim

Relógio do Fim

O Mundo Não É Mais o Mesmo

O cheiro era o primeiro a te dizer que o mundo havia morrido. Um fedor denso e metálico de ferrugem e fumaça, misturado ao dulçor nauseabundo da decomposição e a um travo constante de poeira que impregnava tudo. As ruas, antes avenidas vibrantes de carros e vozes, agora eram artérias congeladas de metal retorcido, carcaças carbonizadas de veículos e silhuetas imóveis que um dia foram pessoas. Prédios, antes arranha-céus altivos, inclinavam-se como titãs feridos, suas janelas quebradas transformadas em orbes vazias que refletiam um céu eternamente cinzento e doente. Gritos, ecos distantes de desespero e conflito, eram a trilha sonora de um planeta transformado em um cenário de guerra constante — não entre exércitos, mas entre sobreviventes desesperados, rosnando por migalhas. O medo, afiado e omnipresente, era o novo idioma da humanidade. A esperança... essa parecia extinta.

Mas em meio à desolação asfixiante, havia alguém que ainda sonhava com algo diferente. Lucas era apenas um jovem, mal na casa dos vinte, um garoto comum que passava os dias imerso em mundos fantásticos. Novels, mangás e animes eram seu refúgio, alimentando a imaginação com reinos mágicos, heróis improváveis e finais felizes onde o bem sempre vencia. Agora, aprisionado neste pesadelo real, ele se perguntava se aqueles sonhos serviam para alguma coisa além de zombar de sua nova realidade.

Sentado no canto mais escuro e empoeirado de sua sala, as costas apoiadas contra uma parede úmida e fria, Lucas observava a tela rachada de seu celular. O aparelho, uma relíquia inútil, não tinha sinal; era apenas um espelho para a sua própria inação. Seus olhos estavam secos, a capacidade de chorar esgotada, mas o coração doía como nunca. Uma dor oca, perfurante, que vibrava em cada batimento.

"E agora? O que eu faço...?" ele sussurrou, a voz rouca, quase inaudível no silêncio pesado da casa. "Meus pais... meus amigos... meus animes... tudo acabou. Só restou... eu."

Uma onda de raiva súbita e avassaladora o atingiu. Num impulso desesperado, ele se levantou, cambaleando, e começou a quebrar tudo ao seu redor. Livros foram jogados contra a parede, suas páginas outrora coloridas e cheias de histórias agora rasgadas e sem sentido. Cadeiras viraram, madeiras estalaram. Ele gritou, praguejando contra o destino cruel, enquanto as lágrimas, finalmente, irrompiam, quentes e amargas, escorrendo por um rosto sujo de pó e desespero. Chorou por horas, por tudo que perdera, por não saber como seguir, por ter sido abandonado em um mundo que não fazia sentido.

Com o estômago roncando dolorosamente, arrastou-se até o que um dia fora sua cozinha. Encontrou uma última fatia de pão mofado, ressecado e quase sem sabor. Engoliu-o como se fosse um banquete, cada migalha um lembrete da fome que o consumia. Sentado à mesa quebrada, encarou o vazio. O silêncio da casa, pela primeira vez, parecia mais alto que os gritos sufocados de fora. Um silêncio que o esmagava.

Horas se arrastaram, marcadas apenas pela sombra que se movia lentamente na parede. A confusão e os ruídos lá fora, que antes urravam em um inferno constante de sirenes, tiros e gritos, diminuíram para um murmúrio distante, quase um lamento. Era uma trégua, uma brecha na insanidade, e Lucas sabia que precisava aproveitá-la. Precisava de água, de comida de verdade. Precisava procurar... qualquer coisa.

Ao abrir a porta da frente, a realidade o golpeou com a força de um soco. Um grupo de figuras famintas brigava na esquina por um pacote de arroz dilacerado. Um corpo estendido na calçada sangrava em silêncio, uma mancha escura e crescente no concreto. Um homem com um olhar vazio atravessava a rua, segurando uma faca suja, a lâmina ainda úmida. Lucas recuou, trêmulo, a porta batendo com um baque surdo, o coração acelerado em seu peito. Que merda de lugar era aquele? Ele se perguntava, encostando-se na madeira, tentando respirar, o gosto amargo do medo na boca.

Mas a necessidade era mais forte que o terror. Esperou, observando pela fresta da janela, até que a rua se esvaziasse novamente. E foi então que viu algo... diferente.

A poucas quadras dali, destacando-se na paisagem de ruínas, havia uma casa. Uma casa que desafiava a lógica daquele mundo. Estava intacta. Limpa. Não havia sujeira em suas janelas, nenhum sinal de pilhagem ou destruição em sua fachada de tijolos vermelhos e telhado bem cuidado. Fechada, sim, mas irradiava uma estranha aura de intocabilidade sob a luz opaca do entardecer. Era como se algo o chamasse até ali, um instinto inexplicável, uma promessa de ordem em meio ao caos.

Lucas se aproximou com cautela, cada passo ecoando em um silêncio que parecia absorver o som. Os portões de ferro forjado estavam trancados, mas ele não hesitou. Pulou o muro, arranhando o braço com a pressa, a adrenalina pulsando em suas veias. Foi até a janela lateral, testando a tranca com um puxão. Firme. Sem pensar duas vezes, pegou uma pedra pesada do chão e arremessou-a contra o vidro. O som do estilhaço cortando o ar foi seguido por uma dor aguda: ele cortou a mão ao se espremer pela abertura, o sangue quente escorrendo.

Lá dentro, ficou paralisado. A casa estava... perfeita. Limpa. Sem poeira, sem teias de aranha, sem qualquer sinal do apocalipse que assolava o mundo exterior. Os móveis estavam cobertos por lençóis brancos, as cortinas imaculadas. Um leve aroma de lavanda pairava no ar, uma memória distante de tempos de normalidade.

"Isso... não faz sentido..." Lucas murmurou, a voz em choque. Sua mente, já frágil, lutava para conciliar a visão com a realidade.

De repente, sua cabeça começou a latejar com uma dor lancinante, como se um prego estivesse sendo martelado em suas têmporas. A visão escureceu por um instante, o mundo se contorcendo em borrões cinzentos e vermelhos. Vozes, múltiplas e indistintas, sussurraram dentro de sua mente, um coro caótico de pensamentos que não eram seus:

"Nada é real. Tudo que você procura... é imperfeito. O ciclo se repete. Escolha. Você não está sozinho."

Ele caiu de joelhos, ofegante, as mãos na cabeça, tentando abater o turbilhão. O terror o envolveu. Mas logo tudo passou, tão rápido quanto veio. Como se nada tivesse acontecido, exceto por uma leve tontura e um zumbido persistente em seus ouvidos.

Levantando-se com dificuldade, Lucas explorou o lugar, a cautela misturada com um senso de irrealidade. Encontrou comida: pães e bolachas ainda embalados, intocados pela sujeira do mundo exterior. Roupas dobradas, limpas, intactas, cheirando a amaciante. Pegou uma sacola de lona que achou no chão e começou a enchê-la. Algo naquela casa não estava certo, era óbvio, mas ele precisava daquilo. Precisava sobreviver.

No porão, uma escadaria de madeira que rangia a cada passo levava a um espaço escuro e úmido. Ali, escondida sob alguns panos velhos, encontrou uma caixa misteriosa, feita de uma madeira escura e polida. Dentro, apenas um relógio. Um modelo antigo, de ponteiros, com uma moldura de metal oxidado, mas que funcionava perfeitamente. Um brilho sutil emanava do mostrador, quase imperceptível.

"O que é isso...?" perguntou em voz alta, a curiosidade sobrepondo-se ao medo. "Como ainda pode estar funcionando?"

Não teve tempo para pensar mais. Gritos agudos e tiros secos começaram a surgir do lado de fora. A confusão voltava, mais próxima e mais violenta desta vez. O tempo estava se esgotando. Lucas correu de volta até a janela por onde entrou, ignorando os cacos de vidro no chão. Cortou mais a mão, machucou o pé ao pular novamente o muro, mas conseguiu sair. Mancando, com a sacola pesada pendurada no ombro, ele correu de volta para sua própria casa, desesperado para se trancar.

Tremendo, largou tudo no chão, as bolachas e as roupas espalhadas. Deitou-se na cama suja, encarando o teto. A dor na mão ardia, latejava em um ritmo constante. O estômago ainda roncava, mas o que mais doía era a ausência. A ausência de tudo.

A chuva começou a cair lá fora, pesada, batendo no telhado. Trovões cortaram o céu, iluminando o quarto escuro por instantes fugazes. E, no silêncio pesado daquela noite, Lucas chorou novamente, desta vez sem raiva, apenas uma profunda e exaustiva tristeza.

Não sabia por quanto tempo aguentaria. Nem o que significava aquele relógio. Mas, no fundo de seu ser, uma estranha sensação se formava. Uma certeza silenciosa de que... o mundo ainda não tinha acabado. Pelo menos, não para ele. Algo havia mudado. E ele estava no centro disso.

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