capítulo 4

A Canção Que Mantém os Pés em Movimento

Dois dias haviam se passado.

O grupo seguia ao sul, atravessando terrenos úmidos, florestas espessas e colinas irregulares. A fome roía as barrigas. As pernas tremiam com o esforço. Mas ninguém reclamava. Lisa estava à frente.

Ela andava firme, o olhar atento, os sentidos aguçados. Às vezes sumia por minutos, apenas para voltar com ervas, água ou um caminho mais seguro. E quando via os olhos cansados das crianças e dos velhos começarem a perder o brilho, fazia o que sabia funcionar desde os tempos antigos:

Cantava.

Era uma canção ancestral, murmurada primeiro em voz baixa. Depois, mais forte, até que todos ao redor conseguiam ouvir. Uma melodia suave, circular, que parecia embalar os passos no compasso da esperança:

> “Sob a lua caminhamos, sem pressa e sem temor,

Que a floresta nos guarde, que a terra nos dê vigor.

Os ventos sussurram histórias, de tempos que vão voltar,

Onde o mal dorme pra sempre, e ninguém precisa lutar.”

A voz de Lisa era tranquila, mas firme. E enquanto cantava, as crianças andavam com menos peso. Os adultos apertavam os dentes com mais força.

Era como se a música segurasse todos pela mão.

Ela olhou para trás e viu um dos feridos — um homem com a perna enfaixada — sendo apoiado por dois companheiros. Estava pálido, suando. Mas andava. Ninguém seria deixado para trás.

Não enquanto Lisa respirasse.

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Parte II — Rastreadores no Limiar

A floresta anterior estava estranha. Silenciosa demais.

Os rastreadores de Val’Khar avançavam com cautela, olhos atentos, narinas farejando o ar. E então, o primeiro estalido.

CRACK.

Um deles caiu em um buraco disfarçado, cravado em estacas de madeira. Gritou. Os outros se espalharam instintivamente. O segundo tropeçou em um laço que o lançou contra uma árvore, costelas quebradas no impacto.

— São armadilhas — rosnou um dos batedores, de olhos arregalados. — Bem feitas. Disfarçadas. Calculadas. Isso não é obra de fazendeiros assustados.

Outro, ajoelhado perto de uma estaca coberta por musgo, tocou o chão e murmurou:

— Isso foi feito com cuidado. Com sabedoria. Como se alguém conhecesse nossa forma de caçar...

O líder do grupo se adiantou, olhos brilhando em raiva contida.

— Humanos comuns não fariam isso. E não deixaram olheiros. Sabem que olheiros são um rastro fácil. Estão aprendendo. Ou sendo guiados...

Ele se virou para um dos mais novos e disse:

— Solte o corvo. O rei precisa saber. Agora.

O rapaz amarrou um pequeno pergaminho na perna da ave e a lançou ao céu cinzento.

“Armadilhas encontradas. Grupo ainda não localizado. Estão a dois dias à frente. Algo os guia.”

O batedor então olhou para o céu e murmurou para si mesmo, sem perceber:

— O que esses humanos têm de diferente...?

Atrás dele, o caçador ferido ainda gemia. Mas ninguém parou para confortá-lo. A floresta seguia em silêncio, e a caçada estava longe de terminar.

O Rei Sente o Cheiro da Traição

O corvo pousou na torre mais alta, onde a neblina nunca se dissipava.

Guardas o recolheram e levaram a mensagem até o trono. Val’Khar a pegou sem pressa, abriu o pergaminho com as unhas alongadas, os olhos vermelhos brilhando no escuro.

“Armadilhas encontradas. Nenhum olheiro avistado. Grupo está dois dias à frente. Estão sendo guiados.”

Por um instante, o rei ficou imóvel. Depois, soltou um rosnado seco, grave, que reverberou pelas paredes de pedra. Seus olhos se estreitaram como lâminas.

Guiados.

Essa palavra não saía da sua cabeça. Humanos comuns não criavam emboscadas assim. Não antecipavam rastreadores. Não desapareciam como fumaça sem deixar cheiro.

— Isso não é obra de sorte — murmurou. — Isso... é instinto. Instinto nosso.

Levantou-se do trono com um movimento rápido demais para olhos humanos. Um de seus conselheiros, presente à margem do salão, ergueu a voz com cautela:

— Acha que... são protegidos por algum espírito da floresta? Um velho xamã humano, talvez?

Val’Khar riu. Um som baixo, sem alegria, carregado de raiva.

— Espíritos não armam estacas. Espíritos não escondem cheiro de sangue. Isso é trabalho de um lycan.

Ele começou a andar pela sala, os passos ecoando como trovões contidos. Cada movimento seu parecia prestes a rasgar o mundo.

— Um traidor... Um dos nossos guiando os fracos. Um macho — rosnou. — Só pode ser. As fêmeas foram quase extintas na última guerra. Frágeis... delicadas... foram as primeiras a cair. As poucas que restaram são guardadas como ouro. Como legado.

Seus olhos brilharam mais intensos.

— Não há fêmea correndo solta por aí. Não pode haver.

Fechou o punho com tanta força que os dedos estalaram.

— Quando eu achar esse verme, vou arrancar a pele dele com minhas próprias garras.

Ainda vivo.

E vou mostrar aos outros o que acontece com quem trai sangue antigo por vermes humanos.

O salão ficou em silêncio. Até os guardas mais selvagens desviaram o olhar.

Val’Khar parou diante do mapa. Traçou com a unha uma linha até o sul, onde sabia que os rastros apontavam.

— Sigam. Apertem a perseguição. Quero o traidor de joelhos antes da próxima lua cheia.

E pela primeira vez em séculos, o rei sentiu raiva misturada com algo que ele odiava sentir:

Insegurança.

Porque no fundo mais escuro de sua alma, onde nem ele ousava olhar, algo sussurrava:

Você já a viu...

Mas ela não é sua traidora.

Ela é outra coisa...

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