A chuva voltou a cair fina, pintando os vidros da biblioteca com pequenos riscos prateados. Lá dentro, o cheiro de papel antigo e madeira úmida se misturava à fragrância suave do chá de camomila que Mariane havia feito. Selena tentava manter o foco no inventário dos livros, mas sua mente insistia em vagar.
Desde o encontro com o homem de olhos dourados — que mais pareciam conter o próprio fogo — algo nela estava em constante tensão. Ele não havia dito seu nome. Nem precisou. A presença dele parecia nomear o ambiente por inteiro, como se a própria cidade reconhecesse aquele ser antes mesmo dela entender o porquê.
— Você viu o Sr. Howle hoje? — perguntou Mariane, aproximando-se com uma xícara extra.
— Não. Ele sumiu desde ontem — respondeu Selena, aceitando a bebida com um leve sorriso.
— Isso acontece. Às vezes ele desaparece por uns dias... sempre volta com olheiras e cheirando a ervas — comentou Mariane, tentando parecer despreocupada, mas falhando. Havia tensão em sua voz.
Selena desviou o olhar para um dos espelhos do salão. Os espelhos na biblioteca nunca refletiam direito. Eram como superfícies manchadas por algo que não se via. Uma vez, ela jurava ter visto uma sombra se mover quando não havia ninguém atrás dela.
Ela se aproximou de um deles. O reflexo distorcido devolveu sua imagem como se pertencesse a outra versão dela — mais pálida, mais atenta, com olhos ligeiramente diferentes.
Um sussurro cruzou o silêncio.
Algo que não veio da sala.
Veio do espelho.
— Você não deveria estar aqui... — a voz era fraca, feminina, quase infantil.
Selena deu um passo atrás. Mariane percebeu o movimento.
— O que foi?
— Eu ouvi... uma voz. — Ela apontou para o espelho, sentindo o frio se espalhar pelo corpo.
Mariane ficou em silêncio por um momento, depois sorriu nervosa.
— Espelhos antigos fazem barulhos. Estalos do vidro, mudança de temperatura. Nada demais...
Mas Selena sabia. Aquilo não fora estalo. Fora uma advertência.
Na floresta, não muito longe dali, ele estava de pé diante de uma árvore queimada, onde runas antigas haviam sido entalhadas. Seus olhos ardiam em dourado, iluminando o contorno de seu rosto de forma sobrenatural. As mãos estavam fechadas, e o poder pulsava debaixo da pele, pedindo para ser liberado.
Mas não funcionava com ela.
Selena Vilarois.
Ela era... diferente.
Desde que cruzara o olhar com ela, o caos que habitava seu sangue se calara. Ele não conseguia ler seus pensamentos, não conseguia invadir suas emoções, como fazia com qualquer outro ser vivo.
E isso o enfurecia.
E o instigava.
Era como se ela fosse feita de algo mais antigo do que ele. Ou como se algo dentro dela estivesse apenas adormecido... à espera.
Nenhuma humana o olhava daquele jeito. Sem medo. Sem submissão. Apenas com uma estranha lucidez nos olhos, como se enxergasse através dele, como se as perguntas que ela carregava fossem perigosamente certas.
Ele nunca gostou de perguntas.
Mas com ela...
Ele queria respostas.
Naquela noite, Selena não conseguiu dormir. O chalé parecia mais vivo do que nunca, rangendo como se respirasse. O abajur piscava com mais frequência, e uma corrente fria se arrastava do corredor até o quarto, como dedos invisíveis tentando abrir caminho.
Ela acendeu todas as luzes. Pegou um dos livros antigos da biblioteca, um que não tinha título, mas estava sempre à mostra. E ali, entre as páginas grossas, encontrou um nome que pareceu ressoar no fundo de sua mente:
Ravenhall.
A cidade estava nas páginas, desenhada em carvão, com torres, florestas, penhascos e símbolos estranhos. E no canto de uma das páginas, havia um retrato inacabado de uma mulher.
Ela era idêntica a Selena.
Mas o nome escrito abaixo era outro:
"Valena Vilarois, marcada pela origem esquecida."
Selena sentiu o coração acelerar.
Aquilo era coincidência demais.
Ela estava conectada àquela cidade muito antes de escolher vir para cá.
Do outro lado, ele caminhava pelos túneis sob Ravenhall. Templos antigos. Pedra sobre pedra. Ossos fundidos à terra. A cidade havia sido construída sobre sangue e pactos.
E agora, algo se mexia nas camadas esquecidas.
Ele andou até o altar de pedras enterrado sob raízes antigas. A cidade dormia em cima de segredos. Mas ele sabia onde os ossos estavam.
Sussurros se ergueram da terra.
Ele falou uma única palavra:
— Vilarois.
E a terra se agitou.
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Atualizado até capítulo 41
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