A chuva cortava o céu como se rasgasse as entranhas da madrugada. Selena observava pela janela do chalé, os pingos escorrendo como veias sobre o vidro embaçado. O interior da casa estava mergulhado em penumbra, aquecido apenas pelo restolho das brasas ainda vivas na lareira.
Ela não conseguia dormir desde o bilhete. Algo nela havia despertado. Um pressentimento? Um chamado? Não sabia dizer. Mas o símbolo, gravado à mão no papel e entalhado discretamente em lugares que ela jamais teria notado se não tivesse procurado... a fazia se sentir observada.
Ou marcada.
Levantou-se da poltrona, pegou uma vela e andou em direção à estante. Os livros que trouxera da biblioteca estavam alinhados, exceto por um. Um volume que ela não lembrava de ter colocado ali. A capa era escura, sem título, e parecia respirar sob a luz trêmula da chama.
O mesmo símbolo. Gravado como cicatriz.
Selena hesitou.
Quando seus dedos tocaram o couro áspero da capa, um arrepio percorreu sua espinha. O ar pareceu mudar. Ficar denso. Vivo.
Ela abriu o livro.
O texto era antigo, escrito em uma caligrafia ondulada e precisa, como se o autor tivesse desenhado cada palavra com reverência. Havia relatos de pactos, datas apagadas, nomes riscados. E descrições de figuras que não eram completamente humanas.
Uma presença se formou às suas costas.
Fria. Elétrica.
— Você é ousada. — disse a voz masculina, grave como trovão abafado entre as paredes da alma.
Ela se virou, muito lentamente. Ele estava ali.
A figura alta, envolta por sombras que pareciam segui-lo como parte de si. O capuz não cobria o rosto como antes. E desta vez, ela viu os olhos.
Dourados.
Intensos, como ouro líquido em combustão, mas de uma frieza sobrenatural que não combinava com a cor. Eles a examinaram de cima a baixo — não como um homem examina uma mulher, mas como quem tenta decifrar um enigma que deveria ser simples, mas se recusa a revelar suas respostas.
Selena manteve a vela firme. Não deu um passo atrás.
— Você sempre aparece quando eu toco o que não devo? — disse, com um tom calmo demais para a situação.
Ele inclinou levemente a cabeça.
— Você não sente medo? — indagou, como se estivesse genuinamente surpreso. — A maioria congela. Ou implora para esquecer o que viu.
— Talvez eu seja péssima em identificar o que devo temer.
Um canto da boca dele se curvou. Não em um sorriso comum, mas em algo mais contido. Um traço que oscilava entre ironia e fascínio.
— Ou talvez você já esteja quebrada de formas que ninguém percebe. — Ele se aproximou. O chão não rangia sob seus passos. — E coisas quebradas... são mais fáceis de moldar.
Selena ergueu o queixo, o olhar firme no dele.
— Você fala como alguém que já tentou moldar muita coisa que não devia.
— Já tentei moldar o destino. O meu. O dos outros. — Ele parou a poucos passos dela. A vela tremulou. — Mas você... — ele a encarou com intensidade — você está além dos meus sentidos.
Silêncio.
— O que quer dizer?
— Não consigo sentir o que há dentro de você. — Ele parecia irritado com isso. Como se aquilo ferisse sua lógica. — Minhas habilidades... funcionam com todos. Todos.
Ela respirou fundo, tentando ignorar o impacto daquelas palavras.
— Então é por isso que está aqui? Pra tentar entender o que eu sou?
— Não. — A voz dele desceu um tom. — Estou aqui porque você abriu algo que deveria ter ficado selado. E porque a cidade sente a sua presença como uma rachadura na terra firme. Uma rachadura por onde antigas coisas podem escapar.
A vela se apagou.
As brasas da lareira se acenderam, fortes e súbitas, como se reagissem à tensão entre os dois.
Na luz rubra, o rosto dele se revelou melhor. Bonito de um jeito rude e cruel. Lábios sérios. Mandíbula angulosa. Pele pálida como se pertencesse a outro tempo. Mas era nos olhos que residia o perigo. O passado. E algo além do humano.
Selena estava tensa por dentro, mas não cedeu.
— E você? O que exatamente é?
Ele hesitou.
— Fui homem. Há muito tempo. — A frase parecia pesar em sua garganta. — Hoje... sou parte da casa. Do solo. Das maldições que construíram essa cidade. Um nome antigo, esquecido nos cantos onde ninguém ousa procurar.
Ela deu um passo à frente, guiada mais pela curiosidade do que pela prudência.
— E por que está me observando?
Os olhos dourados faiscaram, intensos.
— Porque você respondeu ao chamado da casa. Porque algo dentro de você ecoa o que jaz enterrado aqui. Porque você não deveria estar em Ravenhall... mas está.
A tensão era palpável. A pele dela formigava como se estivesse sendo tocada sem ser. Ele não tentou alcançá-la. Mas Selena sabia, com certeza, que se ele fizesse isso, algo dentro dela se partiria.
Ou se revelaria.
Ele se afastou, aos poucos.
— Esse livro? — disse, apontando para o volume ainda nas mãos dela. — É um espelho. Não leia alto. Não leia à noite. E nunca leia perto de alguém em quem confie.
— Por quê?
— Porque ele mostra o que existe por trás das pessoas. E nem todos querem ser vistos.
Selena encarou o livro. O couro parecia mais escuro agora, como se tivesse absorvido parte da conversa. Quando ergueu os olhos novamente, ele havia sumido.
Mas não o silêncio.
Não o calor estranho que ainda percorria o ar onde ele estivera.
Na manhã seguinte, Mariane apareceu mais cedo do que o habitual. Trazia olheiras profundas e um olhar que oscilava entre culpa e preocupação.
— Você mexeu no livro. — disse, direto. — Você abriu ele, não foi?
Selena não negou.
— Você sabia o que ele era?
— Sabia que ele... achava você. — Mariane suspirou, tirando um amuleto do bolso e colocando sobre a mesa. — Selena, tem algo em você que a cidade reconhece. Não é só o chalé que te escolheu. Tem famílias daqui que ainda lembram do que aconteceu há décadas. E o nome Vilarois... nunca foi bem-vindo por essas bandas.
Selena ficou imóvel.
— O que você sabe sobre minha família?
Mariane hesitou. Por fim, disse:
— Talvez nada. Talvez mais do que posso dizer agora. Mas se o que eu suspeito for verdade... você não está aqui por acaso. E nem ele.
Selena sentiu o peito apertar. O livro parecia mais pesado agora. E a cidade mais viva. Como se a qualquer momento, Ravenhall fosse despertar de um longo sono — e ela estivesse bem no centro do pesadelo.
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Atualizado até capítulo 41
Comments
Valentina Valente
Adoro história enigmáticas!!
2025-06-16
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