Os Sussurros no Porão

Na manhã seguinte, o céu parecia feito de ferro fundido. Nenhuma brisa, nenhum som de pássaros. Até os corvos estavam silenciosos, empoleirados nos galhos nus como sentinelas mudas.

Selena acordou com uma dor de cabeça latejante e a sensação de que tinha sonhado com alguém — um homem de olhos cinzentos que andava entre portas. Portas sem maçanetas, portas que se abriam sozinhas.

O símbolo gravado na madeira da noite anterior ainda estava lá. Escurecido, como se tivesse sido marcado a fogo. Ela o fotografou com o celular, mas a imagem saiu borrada, como se a câmera se recusasse a focar.

Na biblioteca, Marianne a esperava com duas canecas fumegantes.

— Você parece ter dormido dentro de uma cripta, — disse, estendendo o chá.

— Mais ou menos isso, — respondeu Selena. — E você não vai acreditar no que encontrei na porta ontem à noite.

Ela mostrou a imagem tremida. Marianne não comentou de imediato. Apenas observou por longos segundos.

— Isso não é comum, — disse, por fim. — Mas também não é novo. A cidade tem códigos antigos. Marcas deixadas por aqueles que veem o que os outros fingem não existir. Você, Selena... talvez esteja começando a ver.

— Ver o quê?

— A parte da cidade que se esconde atrás do espelho.

Selena não respondeu. Apenas apertou a caneca nas mãos, tentando aquecer os dedos frios. Sentia como se algo tivesse sido despertado, algo que já existia dentro dela — só precisava de um lugar como Ravenhall para ganhar forma.

À tarde, o sr. Howle pediu que ela levasse alguns livros para o porão da biblioteca — um espaço raramente utilizado. Umidade nas paredes, lâmpadas piscando. E uma porta trancada no fundo. Selena nunca havia reparado nela antes.

Enquanto organizava uma pilha de livros esquecidos, ouviu um som. Passos. Lentamente, atrás dela.

Virou-se com o coração aos pulos. Mas não havia ninguém.

Até que uma sombra cruzou o espelho manchado que havia no canto. Sim, um espelho. Quem colocaria um espelho no porão de uma biblioteca?

Ela se aproximou. O vidro era opaco, quase leitoso. Mas refletia. E, por um momento, ela viu algo — ou alguém — parado atrás dela.

Ela se virou, o peito arfando.

Ali estava ele.

Parado à sombra da escada. Alto, vestindo preto. Um sobretudo antigo. Cabelos escuros e desalinhados, como se o vento soprasse apenas ao redor dele. Os olhos... os olhos eram de um dourado tão claro que pareciam quase amarelos, mas não havia cegueira neles. Havia direção. Peso. Propósito.

Selena deu um passo para trás.

— Você não deveria estar aqui, — disse ele, com uma voz que parecia ecoar mesmo no silêncio absoluto.

Ela tentou falar, mas a garganta secou.

— Quem é você?

— A pergunta certa seria: o que você viu? — Ele se aproximou, mas seus passos não faziam som. — Porque você viu, não viu? No espelho. No símbolo. Nos sonhos. Está acordando, Selena. E Ravenhall sente isso.

Ela tremia. Mas não de medo. Era outra coisa. Uma estranha mistura de fascínio e vertigem. Como olhar para o abismo e sentir vontade de saltar.

— Me diga seu nome, — ela pediu, quase num sussurro.

Ele sorriu. Mas não era um sorriso amigável. Era um sorriso antigo, como se pertencesse a uma época em que os nomes tinham poder demais para serem ditos de forma leviana.

— Você vai saber. Quando for a hora.

E então, como se o próprio porão respirasse, uma rajada de vento apagou a luz por um segundo. Quando acendeu de novo, ele não estava mais lá.

Selena subiu as escadas em silêncio, o coração martelando. Não contou nada ao sr. Howle. Apenas pegou suas coisas e foi embora mais cedo.

Naquela noite, ela procurou Marianne. Encontraram-se no Chalé dos Gêmeos, um pequeno bar com luzes de velas e cheiro de canela que parecia existir fora do tempo.

Marianne já estava com uma taça de vinho nas mãos, e os olhos brilhavam como se já soubesse o que Selena tinha vindo contar.

— Você o viu.

— Sim.

— Ele falou com você.

Selena assentiu.

— Disse que estou acordando. Que Ravenhall sente isso. O que ele quis dizer com isso?

Marianne não respondeu de imediato. Apenas respirou fundo e disse:

— Você não é só mais uma forasteira. Há pessoas que vêm para Ravenhall e vão embora sem nunca saber o que existe além das aparências. Mas algumas... algumas vieram porque algo dentro delas já pertencia a esse lugar. Você é uma dessas. E ele... Ele é a chave. Ou a porta.

— Quem é ele? — insistiu Selena.

— Alguns o chamam de Vigia. Outros, de Eco. Há quem diga que ele foi o primeiro a ouvir a cidade sussurrar. E nunca mais dormiu desde então.

Selena levou a taça à boca com mãos trêmulas. O vinho desceu áspero. Um calor falso.

— Por que eu? — perguntou, quase em desespero.

Marianne tocou sua mão com suavidade.

— Porque algo em você também sussurra. E ele escutou.

À meia-noite, Selena voltou para o chalé. As velas do corredor se acenderam sozinhas. A porta do quarto estava entreaberta — ela tinha certeza de que a havia fechado.

Sobre a cama, havia um envelope escuro. Sem remetente. Sem selo.

Dentro, um único bilhete. Caligrafia firme, antiga.

"A casa sabe que você chegou. Não tente fugir. Ela já sonha com você."

E, abaixo disso, desenhado com tinta vermelha, o mesmo símbolo da porta.

Do lado de fora, os corvos gritaram todos ao mesmo tempo. Como se estivessem comemorando.

Ou alertando.

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