A Casa das Portas Trancadas

A manhã chegou coberta por uma névoa ainda mais espessa do que nos dias anteriores. Selena acordou com a sensação de que alguém a observava. O espelho trincado da entrada refletia a luz do amanhecer como um olho mal dormido. O chalé, silencioso, parecia manter segredos nas paredes. Talvez fosse só o frio, ou a memória dos sonhos estranhos — mas havia algo que não se encaixava. De novo.

Ela se vestiu com pressa e tomou um gole amargo de café instantâneo antes de sair. A biblioteca era sua nova rotina, e talvez sua única âncora de normalidade naquele lugar que parecia ter saído de um conto gótico mal traduzido.

Ravenhall ainda dormia quando ela chegou ao prédio antigo e coberto de heras que abrigava a biblioteca municipal. As portas eram de madeira escura, pesadas, com um brasão entalhado no alto que ninguém sabia explicar o significado. Um símbolo estranho — dois corvos frente a frente, envoltos em espirais.

O sr. Howle, o bibliotecário-chefe, já estava lá. Como sempre, surgindo de algum canto escuro da biblioteca, sem nunca ser visto entrando ou saindo. Ele murmurou um bom dia sem expressão, os olhos fugindo dela como sempre, e voltou a reorganizar fichas empoeiradas de um catálogo que ninguém usava mais.

Selena foi direto para a sessão de restauração — sua principal tarefa. Livros antigos, muitos deles com capas de couro rachado e páginas marcadas com símbolos estranhos, aguardavam sua atenção.

Foi então que ouviu a voz.

— Você é mais pontual do que o habitual por aqui.

Ela virou-se e encontrou uma garota parada à sua frente, apoiada contra uma estante com o desprezo descontraído de quem nasceu sabendo o que ninguém mais sabia. Cabelos ruivos em ondas soltas, olhos verdes tão intensos que pareciam brilhar sob a luz fraca da biblioteca, e um sorriso que não era exatamente amigável, mas… curioso. Quase felino.

— Marianne, — disse ela, estendendo a mão. — Sou a assistente. Oficialmente. Mas extraoficialmente... sou a única que sabe onde está qualquer coisa neste lugar.

Selena apertou a mão dela, surpresa com a firmeza do gesto.

— Selena. Sou nova aqui. Vim... trabalhar como bibliotecária júnior.

— Ah, sim. A forasteira do chalé na colina. Finalmente nos conhecemos. — O tom de Marianne era brincalhão, mas algo na escolha das palavras soava mais profundo. Como se soubesse mais do que deixava transparecer.

— Como você sabe onde eu moro? — Selena perguntou, erguendo uma sobrancelha.

— Em Ravenhall, todo mundo sabe de tudo. Principalmente das coisas que ninguém fala em voz alta.

A resposta ficou no ar como fumaça. Não dava para saber se era uma piada. Selena sorriu, incerta.

A manhã passou mais rápido do que ela esperava. Marianne mostrou os corredores secretos da biblioteca — literalmente, corredores escondidos atrás de estantes móveis e portas camufladas que rangiam ao abrir. Selena ficou entre maravilhada e perturbada.

— Por que uma biblioteca teria tantas passagens escondidas?

— Porque Ravenhall tem medo de ser esquecida, — respondeu Marianne, com um brilho enigmático nos olhos. — E porque nem todo mundo que vem aqui está procurando por romances de banca. Alguns vêm buscar... respostas.

Na hora do almoço, enquanto comiam sanduíches sentadas no degrau dos fundos da biblioteca, Selena arriscou perguntar:

— Você acredita nessas histórias sobre a cidade? Corvos que falam, sombras que andam, casas que se movem?

Marianne mastigou em silêncio por um instante, depois limpou os cantos da boca com um guardanapo e disse, séria:

— A pergunta certa não é se eu acredito. É se você acredita. Porque quem acredita... começa a ver. E quem vê... não consegue mais desver.

Antes que Selena pudesse responder, um calafrio percorreu sua espinha. De novo, aquela sensação. Um arrepio na pele. Como se algo invisível passasse ao lado delas.

Ela se virou devagar, mas não havia ninguém ali.

Só que Marianne também olhava fixamente para o ponto vazio.

— Você sentiu? — Selena sussurrou.

— Não. — Marianne respondeu, sem desviar o olhar. — Mas eu vi.

À noite, Selena voltou ao chalé. Havia algo novo na porta: uma marca, quase como um símbolo gravado com algum tipo de cinza. Ela esfregou com a manga do casaco, mas o traço não saía. Parecia queimado na madeira.

O telefone fixo tocou — o único meio de contato que funcionava naquela área. Ela atendeu com hesitação.

Silêncio.

Depois, uma respiração.

E uma voz rouca que murmurou, como se fosse o eco de um trovão:

— Você não deveria estar aqui.

A linha caiu.

Selena ficou ali, encarando o vazio, sentindo o coração bater como um tambor ritualístico em seu peito.

E pela primeira vez desde que chegou a Ravenhall, ela sentiu algo que não podia ignorar.

Ela não estava sendo observada.

Ela estava sendo vigiada.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!