O relógio na parede da sala de reuniões marcava 9h02 quando Clara Monteiro entrou, passos firmes, blazer alinhado e expressão de quem já estava vencendo uma discussão interna — provavelmente contra si mesma por ter de aturar Caio Moretti tão cedo.
— Ah, a pontualidade da Rainha do Gelo. Achei que viria em cima da hora só para dramatizar a entrada — alfinetou Caio, já acomodado com uma pasta aberta à sua frente, a voz arrastada de sarcasmo escorrendo entre as palavras.
Clara apenas arqueou uma sobrancelha, deslizando os olhos por ele como se estivesse analisando um inseto sob uma lupa.
— Que bom que você veio cedo, Caio. Assim tem tempo de preparar suas desculpas com antecedência quando falar besteira na frente do chefe.
Ela puxou a cadeira com elegância e sentou-se à mesa, mantendo a postura ereta, implacável. Não houve mais trocas por alguns segundos, mas o ar já carregava eletricidade.
Outros advogados foram entrando. Murmúrios, cafés sendo servidos, sussurros sobre um novo caso importante que chegara à firma. Quando o sócio sênior, Dr. Estevão Ramos, entrou na sala, todos se calaram. Ele era o tipo de homem que fazia silêncio com a presença.
— Bom dia, equipe. Vamos direto ao ponto — disse, seco. — Temos um caso de grande porte vindo aí, mas antes, quero ouvir sugestões sobre os casos de hoje. Clara, você começa.
Ela ajeitou os papéis com precisão militar.
— O caso do grupo de investidores contra a farmacêutica Virex pode ser revertido com base na cláusula de não divulgação. Se mostrarmos que a empresa omitiu riscos na bula de teste e manipulou informações médicas, temos um precedente forte. Já levantei decisões similares do STJ. Posso enviar os autos com os pareceres ainda hoje.
Caio bufou alto, teatral.
— Claro que a Clara já “levantou” os pareceres. Aposto que tem eles em ordem alfabética e separados por cor de post-it.
Ela virou o rosto lentamente para ele, os olhos faiscando com um meio sorriso.
— Desculpa, você quer que eu desenhe pra você entender ou vai continuar sendo apenas uma decoração sarcástica na sala?
— Só estava esperando você parar de recitar o Código Penal como se fosse poesia — rebateu ele, inclinando-se para frente. — Mas já que estamos opinando, o caso da Virex não vai cair por manipulação de bula. O caminho é o contrato de patrocínio assinado com a universidade. A quebra de ética acadêmica pesa mais que qualquer bula.
Dr. Estevão observava. Com as mãos unidas sob o queixo, olhos de águia, não interrompia. Um leve sorriso surgiu em seu rosto. Havia ali algo... promissor.
— Interessante — murmurou ele. — Clara, você revisou esse contrato de patrocínio?
Ela hesitou por um segundo. Um mísero segundo. O suficiente para Caio morder a vitória com os olhos.
— Ainda não, mas posso revisar agora e complementar com os dados da bula — respondeu, sem piscar.
Caio ergueu a caneta como um troféu invisível.
— Olha só, até a perfeição pode se distrair. Milagre.
— Eu não me distraí — ela retrucou, séria. — Eu apenas deixei o caminho livre pra ver qual rato se atreveria a correr primeiro.
Um burburinho sutil percorreu a mesa. Dois advogados trocaram olhares cúmplices, como se estivessem assistindo a um episódio particularmente afiado de uma série judicial.
Dr. Estevão pigarreou.
— Vocês dois. Monteiro. Moretti. Vocês funcionam como fogo e gasolina. Mas o curioso... é que uma faísca do raciocínio de um parece incendiar o do outro.
Clara e Caio trocaram olhares. Por uma fração de segundo, o sarcasmo se dissolveu. O que restou ali, no silêncio, foi algo incômodo. Familiar. Quente.
— Se me permite dizer, doutor — começou Caio, esticando as palavras — eu e Clara temos estilos completamente incompatíveis. O que ela chama de estratégia, eu chamo de vaidade jurídica.
— E o que ele chama de coragem, eu chamo de imprudência com laquê — devolveu ela, sem perder o ritmo.
Dr. Estevão riu, baixinho. Mas riu.
— Talvez. Ou talvez seja justamente essa colisão que nos dê vantagem competitiva. Se um dia eu precisasse de dois cérebros afiados pra resolver um caso impossível, provavelmente colocaria vocês juntos. Não por afinidade, mas por resultado.
Ambos engoliram seco. Porque mesmo com todos os argumentos contrários, sabiam que ele estava certo.
A reunião seguiu, mas os olhares de Clara e Caio se cruzaram algumas vezes. E cada cruzamento parecia mais... incômodo do que o anterior. Um incômodo que não vinha do desprezo. Vinha de algo que nenhuma defesa sabia nomear.
E como dois advogados brilhantes, isso os enfurecia ainda mais.
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Atualizado até capítulo 51
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