A manhã avançava preguiçosa na Fazenda Santa Luzia. O sol já começava a dourar as folhas do milharal quando Miguel apareceu na cozinha, dessa vez um pouco mais adaptado à rotina matinal. Os cabelos bagunçados, a camisa meio amarrotada e o cheiro leve de sabonete rural revelavam que ele já não era o mesmo homem engomado do primeiro dia.
— Tá até com cara de quem dormiu bem. — disse Ana, sem tirar os olhos da frigideira onde fritava ovos caipiras com manteiga.
— A Rosinha me respeitou hoje. Dormiu longe da janela.
— Ela só quer carinho. Diferente de muita gente por aqui...
Miguel riu. Sentou-se à mesa e aceitou a xícara de café que Ana serviu com aquele jeito distraído e despretensioso que começava a deixá-lo inquieto. Era como se cada gesto dela — até o mais comum — tivesse uma intenção oculta.
Mas talvez a intenção estivesse só na cabeça dele.
— E aí, vai trabalhar na obra hoje? — ela perguntou, pegando um pote de doce de leite do armário.
— Vou. Mas antes, queria visitar aquele córrego que você mencionou. O que passa atrás da estufa. Posso?
— Pode. Mas cuidado. O chão lá escorrega, e a água é gelada. Ideal pra quem precisa esfriar a cabeça.
Ela o encarou por um segundo a mais. Foi rápido, mas foi o suficiente.
Miguel percebeu. Sorriu de leve.
— Tá dizendo que minha cabeça tá quente?
— Não sei... Você é que vive vermelho toda vez que eu chego perto.
Ela disse aquilo com a naturalidade de quem comenta sobre o tempo, mas Miguel travou. A resposta não veio de imediato. Apenas a memória do toque de terra nas mãos de Ana, o som da risada dela no dia anterior e aquela mania que ela tinha de olhar nos olhos como quem atravessa a gente por dentro.
— E você? — ele arriscou, com a voz um pouco mais baixa. — Fica vermelha com facilidade?
— Só quando tá sol demais... ou quando encaram demais.
Silêncio. Curto, denso. O som do café borbulhando na chaleira parecia mais alto do que o normal.
Dona Zefa entrou na cozinha nesse instante, quebrando a tensão com a energia de quem já viveu tempo demais pra se surpreender com flertes mal disfarçados.
— Ana, cê já mexeu no couro da sela? O Chico vai pro pasto mais tarde.
— Já sim, vó. Tava só dando um café pro moço da cidade aqui.
— Café? Hm. Isso tá mais com gosto de chá de olhar...
Ana riu. Miguel pigarreou.
Meia hora depois, já no caminho para o córrego, Ana caminhava na frente, com o vestido leve balançando na altura dos joelhos. Miguel ia atrás, observando os pés dela na terra, o modo como ela segurava o chapéu pra não voar com o vento. Tinha algo de sensual ali — mas nada vulgar. Era um charme natural, de quem não fazia esforço para ser o que era.
Quando chegaram ao riacho, Ana parou de repente.
— Aqui. Cuidado pra não escorregar.
Ela pisou numa pedra e atravessou com agilidade. Miguel tentou seguir, mas escorregou no segundo passo e caiu sentado — direto na água.
— Ai! Frio!
Ana se virou, surpresa — e não segurou o riso.
— Eu avisei.
— Você podia ter me ajudado.
— E perder esse espetáculo? Nem pensar.
Ele olhou pra ela, encharcado, rindo de si mesmo. Ana se aproximou devagar e estendeu a mão. Ele segurou — e não soltou rápido.
— Tá me devendo uma toalha. — ele disse.
— E você tá me devendo umas aulas de equilíbrio.
Os dois estavam perto. Bem perto. O riso cessou, e o som da água correndo preencheu o silêncio entre eles.
Miguel olhou nos olhos dela, e dessa vez, Ana não desviou.
— Você me deixa meio sem chão. — ele disse, num sussurro.
— Aqui é tudo sem chão firme, moço. Mas cê aprende a pisar.
Ela se afastou um passo, como quem diz "não agora", mas com um sorriso que prometia "talvez logo". E Miguel entendeu.
O coração batia mais rápido. A água gelada não era páreo pro calor que começava a crescer entre eles.
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Atualizado até capítulo 49
Comments
Laci Assis
😄💪
2025-06-08
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