Capítulo 3 – Moderno Demais pro Sertão

Na primeira noite, Miguel tentou de tudo para manter uma rotina parecida com a da cidade. Espalhou papéis sobre a mesa da varanda, conectou o notebook à tomada e puxou uma extensão que encontrou perto do rádio antigo. Só faltava o wi-fi.

Só que não tinha wi-fi.

Nem 3G.

Nem sequer sinal de celular.

— Isso aqui é um buraco de silêncio — ele murmurou, balançando o celular no ar como uma varinha mágica. — Um buraco charmoso... mas ainda um buraco.

Na manhã seguinte, acordou com o som de um galo que parecia ter nascido pra fazer show.

O sol ainda nem tinha se espreguiçado direito e já havia movimento na cozinha. Cheiro de pão de queijo assando, lenha estalando e Ana cantarolando uma moda de viola antiga enquanto batia a massa com força.

— Bom dia, dorminhoco. — ela disse, sem olhar pra ele. — Na cidade vocês só acordam depois do trânsito?

— Por aí... — respondeu Miguel, coçando os olhos. — Que horas são?

— Cinco e meia.

— Da... manhã?

— Ué. Tem outro cinco e meia?

Miguel bufou e se sentou à mesa, ainda meio torto. Tentou pedir um café com leite "morno, se possível", e recebeu um olhar cômico de Dona Zefa.

— Aqui o leite sai da vaca quente, meu filho. Morno só se deixar esfriar.

Entre uma colher de pão de queijo e outra, Miguel tentava puxar conversa com Ana. Ela, por sua vez, fingia não perceber o quanto ele estava deslocado.

— O que você costuma fazer de manhã? — ele perguntou, tentando parecer interessado.

— Primeiro vejo se choveu. Depois dou ração pras galinhas. Depois cuido das plantas. Depois, se der tempo, venho tomar café.

— E o celular?

Ela riu, com um olhar zombeteiro.

— Celular é mais pra quando a gente vai na cidade. Ou pra olhar receita de bolo no Google.

Miguel soltou um suspiro teatral.

— E o que as pessoas fazem quando ficam entediadas?

— Conversam. Olham o céu. Andam descalças. Pensam.

— Pensam?

— É. Coisa que a cidade parece ter esquecido.

Ele riu, sincero dessa vez.

— Você tem resposta pra tudo, né?

— Não. Só sei responder quando tô com paciência. E hoje, olha... tô com mais paciência que costume.

Dona Zefa escutava tudo de longe, fingindo mexer numa compota, mas com as orelhas atentas. Seu Chico, no terreiro, afiava uma foice, alheio ao flerte sutil que começava a brotar entre o moço da cidade e a neta da roça.

Mais tarde, Miguel tentou caminhar até o terreno onde seria iniciada a construção da casa ecológica. Levava consigo um caderno de esboços e uma garrafinha de água — que deixou cair duas vezes antes de alcançar a sombra de um pé de manga.

Ana apareceu por trás, silenciosa, com um chapéu e uma cesta de ferramentas.

— Vai morrer de insolação aí?

— Achei que ia dar conta. — disse ele, sem graça.

— Tá tentando desenhar uma casa no lugar errado. Aqui, antes de pensar na planta, tem que entender a terra.

— É por isso que tô aqui. Pra entender. — Miguel respondeu, sério dessa vez.

Ana ficou em silêncio por um momento, encarando-o de verdade.

— Então escuta bem: a terra ensina mais quem escuta do que quem manda. E a casa boa é a que conversa com o lugar onde nasceu.

Miguel anotou aquilo mentalmente.

A casa boa é a que conversa com o lugar onde nasceu.

Talvez valesse também para pessoas.

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Comments

Laci Assis

Laci Assis

Estou amando ja dei umas risadas

2025-06-08

2

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Capítulos
1 Capítulo 1 – Estrada de Terra
2 Capítulo 2 – A Moça das Flores
3 Capítulo 3 – Moderno Demais pro Sertão
4 Capítulo 4 – Galinha na Janela
5 Capítulo 5 – Café, Couro e Paciência
6 Capítulo 6 – A Primeira Chuva
7 Capítulo 7 – Gente de Mundos Diferentes
8 Capítulo 8 – A Chegada de Letícia
9 Capítulo 9 – Noite de Fogueira
10 Capítulo 10 – A Tempestade e o Bilhete
11 Capítulo 11 – Raízes e Cicatrizes
12 Capítulo 12 — Heranças Esquecidas
13 Capítulo 13 – Terra Vermelha
14 Capítulo 14 – Festa da Colheita
15 Capítulo 15 – Terra em Julgamento
16 Capítulo 16 – O Último Testamento
17 Capítulo 17 – Quebra de Cercas
18 Capítulo 18 – Raízes Profundas
19 Capítulo 19 – Tempestade à Vista
20 Capítulo 20 – Vozes da Terra
21 Capítulo 21 — A Terra Não Cala
22 Capítulo 22 – Estrada de Volta
23 Capítulo 23 – Palavras que Plantam
24 Capítulo 24 – Casa Raízes
25 Capitulo 25
26 Capítulo 26 – Asa e Raiz
27 Capítulo 27 – Riscos e Colheitas
28 Capítulo 28 – Entre Estações
29 Capítulo 29 – A Casa que Nasceu do Vento
30 Capitulo 30 a viagem
31 Capitulo 31
32 Capitulo 32
33 Capítulo 33 – Entre Convites e Decisões
34 Capítulo 34 – O Casamento da Asa com a Raiz
35 Capítulo 35 – Céu de Dois
36 Capítulo 36– Casa Corpo Alma
37 Capítulo 37 – Fumaça no Horizonte
38 Capítulo 38 – Cinzas no Campo
39 Capítulo 39 – Vozes da Terra
40 Capítulo 40 – Onde Queima, Brota
41 Capítulo 41 – Coração em Semente
42 Capítulo 42 – Laços de Sangue e Terra
43 Capítulo 43 – Tempestade no Berço da Terra
44 Capítulo 44 – Clara de Sol e Terra
45 Capítulo 45 – Água e Nome
46 Capítulo 46 – Ramo Curvado
47 Capítulo 47 – Livro do Tempo
48 Capítulo 48 – O Vento que Ensina
49 Capítulo Final – Onde a Terra Abraça o Céu
Capítulos

Atualizado até capítulo 49

1
Capítulo 1 – Estrada de Terra
2
Capítulo 2 – A Moça das Flores
3
Capítulo 3 – Moderno Demais pro Sertão
4
Capítulo 4 – Galinha na Janela
5
Capítulo 5 – Café, Couro e Paciência
6
Capítulo 6 – A Primeira Chuva
7
Capítulo 7 – Gente de Mundos Diferentes
8
Capítulo 8 – A Chegada de Letícia
9
Capítulo 9 – Noite de Fogueira
10
Capítulo 10 – A Tempestade e o Bilhete
11
Capítulo 11 – Raízes e Cicatrizes
12
Capítulo 12 — Heranças Esquecidas
13
Capítulo 13 – Terra Vermelha
14
Capítulo 14 – Festa da Colheita
15
Capítulo 15 – Terra em Julgamento
16
Capítulo 16 – O Último Testamento
17
Capítulo 17 – Quebra de Cercas
18
Capítulo 18 – Raízes Profundas
19
Capítulo 19 – Tempestade à Vista
20
Capítulo 20 – Vozes da Terra
21
Capítulo 21 — A Terra Não Cala
22
Capítulo 22 – Estrada de Volta
23
Capítulo 23 – Palavras que Plantam
24
Capítulo 24 – Casa Raízes
25
Capitulo 25
26
Capítulo 26 – Asa e Raiz
27
Capítulo 27 – Riscos e Colheitas
28
Capítulo 28 – Entre Estações
29
Capítulo 29 – A Casa que Nasceu do Vento
30
Capitulo 30 a viagem
31
Capitulo 31
32
Capitulo 32
33
Capítulo 33 – Entre Convites e Decisões
34
Capítulo 34 – O Casamento da Asa com a Raiz
35
Capítulo 35 – Céu de Dois
36
Capítulo 36– Casa Corpo Alma
37
Capítulo 37 – Fumaça no Horizonte
38
Capítulo 38 – Cinzas no Campo
39
Capítulo 39 – Vozes da Terra
40
Capítulo 40 – Onde Queima, Brota
41
Capítulo 41 – Coração em Semente
42
Capítulo 42 – Laços de Sangue e Terra
43
Capítulo 43 – Tempestade no Berço da Terra
44
Capítulo 44 – Clara de Sol e Terra
45
Capítulo 45 – Água e Nome
46
Capítulo 46 – Ramo Curvado
47
Capítulo 47 – Livro do Tempo
48
Capítulo 48 – O Vento que Ensina
49
Capítulo Final – Onde a Terra Abraça o Céu

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