Na primeira noite, Miguel tentou de tudo para manter uma rotina parecida com a da cidade. Espalhou papéis sobre a mesa da varanda, conectou o notebook à tomada e puxou uma extensão que encontrou perto do rádio antigo. Só faltava o wi-fi.
Só que não tinha wi-fi.
Nem 3G.
Nem sequer sinal de celular.
— Isso aqui é um buraco de silêncio — ele murmurou, balançando o celular no ar como uma varinha mágica. — Um buraco charmoso... mas ainda um buraco.
Na manhã seguinte, acordou com o som de um galo que parecia ter nascido pra fazer show.
O sol ainda nem tinha se espreguiçado direito e já havia movimento na cozinha. Cheiro de pão de queijo assando, lenha estalando e Ana cantarolando uma moda de viola antiga enquanto batia a massa com força.
— Bom dia, dorminhoco. — ela disse, sem olhar pra ele. — Na cidade vocês só acordam depois do trânsito?
— Por aí... — respondeu Miguel, coçando os olhos. — Que horas são?
— Cinco e meia.
— Da... manhã?
— Ué. Tem outro cinco e meia?
Miguel bufou e se sentou à mesa, ainda meio torto. Tentou pedir um café com leite "morno, se possível", e recebeu um olhar cômico de Dona Zefa.
— Aqui o leite sai da vaca quente, meu filho. Morno só se deixar esfriar.
Entre uma colher de pão de queijo e outra, Miguel tentava puxar conversa com Ana. Ela, por sua vez, fingia não perceber o quanto ele estava deslocado.
— O que você costuma fazer de manhã? — ele perguntou, tentando parecer interessado.
— Primeiro vejo se choveu. Depois dou ração pras galinhas. Depois cuido das plantas. Depois, se der tempo, venho tomar café.
— E o celular?
Ela riu, com um olhar zombeteiro.
— Celular é mais pra quando a gente vai na cidade. Ou pra olhar receita de bolo no Google.
Miguel soltou um suspiro teatral.
— E o que as pessoas fazem quando ficam entediadas?
— Conversam. Olham o céu. Andam descalças. Pensam.
— Pensam?
— É. Coisa que a cidade parece ter esquecido.
Ele riu, sincero dessa vez.
— Você tem resposta pra tudo, né?
— Não. Só sei responder quando tô com paciência. E hoje, olha... tô com mais paciência que costume.
Dona Zefa escutava tudo de longe, fingindo mexer numa compota, mas com as orelhas atentas. Seu Chico, no terreiro, afiava uma foice, alheio ao flerte sutil que começava a brotar entre o moço da cidade e a neta da roça.
Mais tarde, Miguel tentou caminhar até o terreno onde seria iniciada a construção da casa ecológica. Levava consigo um caderno de esboços e uma garrafinha de água — que deixou cair duas vezes antes de alcançar a sombra de um pé de manga.
Ana apareceu por trás, silenciosa, com um chapéu e uma cesta de ferramentas.
— Vai morrer de insolação aí?
— Achei que ia dar conta. — disse ele, sem graça.
— Tá tentando desenhar uma casa no lugar errado. Aqui, antes de pensar na planta, tem que entender a terra.
— É por isso que tô aqui. Pra entender. — Miguel respondeu, sério dessa vez.
Ana ficou em silêncio por um momento, encarando-o de verdade.
— Então escuta bem: a terra ensina mais quem escuta do que quem manda. E a casa boa é a que conversa com o lugar onde nasceu.
Miguel anotou aquilo mentalmente.
A casa boa é a que conversa com o lugar onde nasceu.
Talvez valesse também para pessoas.
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Atualizado até capítulo 49
Comments
Laci Assis
Estou amando ja dei umas risadas
2025-06-08
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