Raizes do Coração
O sol nascia preguiçoso sobre a Serra do Mato Velho, dourando os pastos úmidos de orvalho. A fazenda Santa Luzia acordava com seus sons costumeiros: mugidos lentos dos bois, o canto dos galos, e o chiado da chaleira no fogão a lenha.
Ana Luíza estava debruçada na varanda, os pés descalços encostando na madeira gasta do assoalho. Tinha vinte e sete anos e uma calma que era só fachada — por dentro, carregava a pressa de quem queria que a vida finalmente acontecesse.
— Vai ficar aí parada feito espantalho ou vai ajudar a tirar leite? — gritou Dona Zefa lá do quintal, com a mão na cintura e um sorriso no canto da boca.
— Tô indo, mulher! — respondeu Ana, rindo. — Só tô sentindo o cheiro da manhã.
Desceu as escadas com passos leves, trança solta nas costas e a camisa arregaçada até os cotovelos. A terra grudava nos pés, mas aquilo era mais reconfortante do que qualquer sapato da cidade.
Mal sabia ela que aquele dia traria bem mais do que ordenha e café quente.
O sol do meio-dia batia forte no capô prateado do carro alugado, que tremia a cada buraco da estrada de terra. Miguel segurava firme o volante enquanto tentava, inutilmente, seguir as instruções do GPS — que, agora, apenas repetia "Recalculando rota" em um tom debochado.
— Recalculando é o escambau... — murmurou ele, limpando o suor da testa com a manga da camisa social amassada. — Eu devia estar num escritório com ar-condicionado, não enfiado no mato atrás de uma fazenda com nome de santa...
A paisagem ao redor era um mar de verde, com morros suaves e cercas de madeira que delimitavam pequenas plantações. Vacas pastavam ao longe, indiferentes ao caos urbano que ele havia deixado para trás. Um bando de passarinhos cruzou o céu limpo, cantando alto como se zombassem dele.
De repente, viu uma figura feminina ao longe, andando devagar por uma trilha paralela à estrada, com um chapéu de palha cobrindo o rosto e uma cesta de flores nos braços.
— Aleluia, alguém vivo. — disse Miguel, estacionando o carro aos trancos.
Ele saiu pisando na terra seca, quase escorregando na poeira fina. Se aproximou, erguendo a mão.
— Oi! Com licença... é por aqui a Fazenda Santa Luzia?
A moça ergueu o rosto devagar. Tinha olhos escuros e vivos, e um sorriso pequeno, mas intrigado. Uma mecha de cabelo castanho escapava por baixo do chapéu. Ela olhou Miguel dos pés à cabeça, com um ar divertido.
— É sim, uai. Mas cê tá com cara de quem perdeu o rodeio e achou o mato.
Miguel riu, sem graça.
— Eu sou o Miguel. Arquiteto. Vim pra acompanhar o projeto da casa ecológica. Tô... um pouco perdido.
— Percebi. — ela respondeu, com a voz mansa e arrastada. — Essa estrada engana mesmo. Mas não se assuste não, a fazenda é logo ali. Vem que eu te mostro o caminho.
Ele a acompanhou, tentando não tropeçar nas pedras soltas. A cada passo, Miguel sentia a cidade se afastar um pouco mais — como se os sapatos caros, agora cobertos de poeira, fossem a última lembrança do mundo que ele conhecia.
— E você, mora aqui?
— Desde que nasci. Ana Luíza. Mas pode me chamar só de Ana.
— Ana... bonito nome. — ele disse, olhando de lado.
Ela sorriu de novo, discreta.
— Bonito mesmo é quem sabe usar o nome com cuidado.
Eles seguiram em silêncio por alguns minutos, até que a entrada da fazenda surgiu entre dois pés de ipê amarelo. A casa, antiga, era toda de madeira, com varandão e cortinas floridas. Um fogão a lenha soltava fumaça tranquila no ar.
Miguel parou por um instante, respirando fundo o cheiro de terra, mato e lenha queimada. Um cheiro que ele não conhecia, mas que, por algum motivo, o acalmava.
— Bem-vindo à roça, moço da cidade. — disse Ana, com um brilho malicioso nos olhos. — Aqui o tempo passa mais devagar. E o coração também.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 49
Comments