O cavaleiro da promessa.

O silêncio do luto de Lira, um vazio estranho e aterrorizante dentro dela, foi abruptamente rasgado. Uma voz, tão familiar quanto as batidas de seu próprio coração em outro tempo, ressoou por entre os escombros.

"Lira... É... É você mesma?"

A jovem ergueu a cabeça, seus olhos verdes antes expressivos, agora distantes, fixando-se sobre o ombro. Ali estava ele, emoldurado pela fumaça e pela destruição: um homem bonito, com ombros largos e uma postura nobre, vestido em uma armadura de couro com detalhes metálicos, a espada embainhada à sua cintura. O cabelo, um castanho escuro e ligeiramente rebelde, era inconfundível. Era Kael.

As palavras saíram de sua garganta com dificuldade, um sussurro rouco que mal se ouvia sobre o crepitar das chamas. "Ka... Kael?" Lira mal o reconhecia, não apenas pela armadura, mas pela dor que se estampava em seu rosto, uma dor que ela própria não conseguia sentir. Seu estômago roncou, alto e inoportuno, um lembrete cruel da sede que a corroía.

Kael deu um passo à frente, os olhos azuis penetrantes varrendo a cena de horror, antes de se fixarem nela, buscando uma explicação. "O que houve aqui, Lira? O que aconteceu com nossa família, nossos amigos?"

Com grande dificuldade, Lira abriu a boca para responder, as palavras presas em sua garganta seca. Mas, ao tentar formar um som, suas presas, já alongadas e afiadas, expuseram sua terrível nova identidade. Kael viu. Os olhos azuis penetrantes que um dia a olharam com carinho agora se arregalaram em choque e uma incredulidade dolorosa.

Ele recuou um passo, sua mão instintivamente procurando o cabo da espada. "O-O que aconteceu com você? Você..." A voz de Kael falhou. Seus olhos varreram a cena de destruição mais uma vez, parando nas gargantas rasgadas de seus amigos e familiares, depois retornando ao sangue que manchava as roupas de Lira. Uma fria compreensão, um temor profundo e desesperador, invadiu seu rosto. Não era um medo de covardia, mas o pavor de aceitar uma verdade cruel demais para ser processada.

"Lira... Você os matou?" perguntou Kael, a voz embargada por uma dor quase maior que o horror. Era o temor de aceitar que sua melhor amiga de infância, a garota que ele prometera proteger e que o esperava, havia se tornado o monstro responsável por toda aquela carnificina, por ter exterminado suas famílias e destruído o lar que ambos conheciam.

Uma parte de Lira, a Lira antiga, a garota que amava Kael, queria gritar a verdade, explicar a dor, o ataque do monstro-morcego, o vampiro sombrio que a transformara. Mas sua garganta estava seca, sua voz rouca, e a fome, uma fome insuportável e predatória, começou a dominar cada pensamento.

Os olhos de Kael, azuis e cheios de uma dor que Lira não podia mais sentir, a fixavam, esperando por uma resposta. A adaga de aço élfico estava a poucos passos, caída no chão. Ele já empunhava a espada. O mundo se tornou uma névoa, a fumaça das casas queimando misturou-se com o cheiro opressor de sangue. O que Kael via era uma imagem irrefutável: Lira, de pé em meio à carnificina, com presas à mostra e sangue em suas roupas.

A frieza que a invadira mais cedo agora se solidificava, roubando qualquer resquício de remorso ou tristeza. Em vez disso, uma raiva gélida começou a borbulhar. Raiva por Kael, por sua acusação, por sua incapacidade de entender o horror que ela havia suportado. E, por baixo de tudo, a sede. Uma sede tão intensa que a visão do sangue em suas próprias roupas, o sangue de seus antigos vizinhos, de sua antiga vida, tornou-se algo tentador.

Lira não respondeu com palavras. Em vez disso, um grunhido baixo e gutural escapou de sua garganta, um som estranho e não humano. Seus olhos verdes, antes expressivos, agora brilhavam com um fulgor antinatural, fixos em Kael, não mais como um amigo, mas como uma presa em potencial. A fome a estava cegando.

"Agora não tenho mais nenhuma dúvida... Lira, me desculpe, mas a minha amiga não existe mais." A voz de Kael, embora quebrada pela dor, era firme e resoluta. Com um movimento ágil, ele desembainhou sua espada de aço élfico, a lâmina polida reluzindo perigosamente sob a luz bruxuleante dos incêndios.

Por um instante, Lira conseguiu se conter. A Lira que o amava travou uma batalha silenciosa contra a escuridão que a invadia. Mas a fome, agora uma criatura gritante em seu interior, e a raiva pela traição implícita na espada desembainhada de Kael, a empurraram ainda mais para o limite. Sua postura graciosa deu lugar a uma tensão predatória. Com uma velocidade sobrenatural, quase um borrão, Lira avançou até sua adaga caída e a agarrou, a lâmina de aço élfico parecendo vibrar em sua palma.

Kael não hesitou. Seu treinamento de cavaleiro era um reflexo, e vendo a velocidade e a fúria nos olhos de Lira, ele não esperou. Ele já estava sobre ela, a espada levantada, prestes a desferir um golpe fatal que cortaria sua cabeça. Lira, no entanto, era mais rápida do que ele jamais poderia ter imaginado. Ela se esquivou por muito pouco, sentindo o vento da lâmina varrer seus cabelos ruivos. Com um movimento fluido, ela impulsionou a perna, golpeando Kael com um chute que o fez cambalear para trás, ganhando o espaço vital entre eles.

"Ka... Kael..." Lira tentou novamente, a voz rouca, quase um lamento, mas a sede e a fúria tornavam as palavras quase impossíveis de formar.

Os olhos azuis penetrantes de Kael, agora marejados, fixaram-se nela, não com ódio, mas com uma tristeza abissal. Lágrimas escorriam livremente por seu rosto marcado pela sujeira e cansaço. "Lira... Eu sinto muito", ele disse, a voz embargada pela culpa. "Se eu não tivesse demorado demais... acho que isso poderia ter sido evitado." O lamento em sua voz era palpável, a dor de uma promessa quebrada, de um mundo perdido, e de uma amiga transformada em algo irreconhecível.

Kael avançou novamente, não com a hesitação de antes, mas com a ferocidade de um cavaleiro treinado para a caça. Seus olhos azuis estavam fixos em Lira, a dor misturada a uma resolução gélida. Lira conseguiu desviar do golpe da espada por pouco, a lâmina de aço élfico sibilando no ar onde sua cabeça estivera momentos antes. Mas Kael era mais do que força; ele era estratégia. Desferiu uma ombrada poderosa que atingiu Lira em cheio, fazendo-a perder o equilíbrio e cambalear.

Um perigo diferente, gélido e ancestral, irradiou de Kael. Não era apenas a ameaça da espada, mas algo mais profundo, algo que Lira, em sua nova condição, podia sentir de forma visceral. Os olhos de Kael ardiam com uma determinação implacável. Então, o tormento chegou para a ruiva. De sua cintura, Kael puxou uma cruz de prata, simples, mas imbuída de um poder que Lira sentiu até os ossos. Ele a ergueu, e sua voz retumbou com uma oração poderosa:

"Que a luz santa a queime, criatura das trevas!"

A cruz de prata brilhou com uma intensidade cegante, um fulgor dourado e puro que se chocou contra a essência vampírica de Lira. Uma dor excruciante irrompeu dentro dela, como se seu corpo estivesse sendo consumido por chamas invisíveis. Era o fogo sagrado contra a profanação, e Lira sentiu cada fibra de seu novo ser arder.

A agonia a dominou, mas um instinto de sobrevivência, selvagem e primário, tomou conta. Antes que Kael pudesse aproveitar sua deixa, antes que a luz pudesse desintegrá-la, Lira, mesmo com a dor lancinante, chutou uma nuvem de terra e detritos nos olhos do cavaleiro. O ataque repentino o cegou por um instante crucial. Lira aproveitou a chance, virando-se e correndo em disparada para a escuridão da floresta, uma sombra vermelha em agonia, desaparecendo entre as árvores enquanto os gritos de dor e a luz da cruz a perseguiam.

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lina

lina

continua continua continua continua continua continua continua continua continua continua continua continua continua continua continua continua continua

2025-05-26

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