A viagem de volta para o interior pareceu mais longa que nunca. Luana via as paisagens pela janela do carro com um misto de saudade e frustração, como se cada árvore e curva da estrada lembrassem o quanto ela tinha idealizado algo que talvez nunca tivesse existido. A frieza de Davi na cidade reverberava dentro dela como um eco surdo. Não era apenas a falta de carinho; era como se ele não a enxergasse mais.
Ao retornar, encontrou conforto nas cores. Seu ateliê improvisado no sótão parecia sussurrar que ali ainda havia um espaço onde ela podia ser quem era, sem julgamentos, sem tentar caber no mundo de outra pessoa. Pintar tornou-se não apenas um refúgio, mas uma espécie de reconstrução interna. A cada tela, despejava emoções, memórias e feridas não cicatrizadas. E, no meio de tudo isso, começou a surgir também algo novo: força.
Conversar com Dona Helena foi como abrir uma janela num quarto escuro.
— Você tem um talento que precisa ser mostrado, Luana — disse a professora, observando uma de suas novas telas. — A cidade não pode ser só sobre o Davi. Tem que ser sobre você também.
Aquilo ficou martelando por dias. Pela primeira vez, Luana permitiu-se imaginar uma ida para a cidade sem que Davi fosse o centro de tudo. Começou a pesquisar cursos de artes, possibilidades de bolsa, lugares onde pudesse expor seus quadros. Não era mais por ele. Era por ela.
O contato com Davi foi se tornando raro e automático. As mensagens que ele mandava falavam sempre sobre o trabalho, sobre como estava ocupado, e ele sequer perguntava sobre os estudos dela ou seus planos. Era como se estivessem em universos paralelos — e ela, cada vez mais, deixava de girar ao redor dele.
Então veio a surpresa: sua tela vencedora foi vendida para um colecionador. Receber aquele valor simbólico foi um marco. Era a primeira vez que alguém pagava pela sua arte. Pela sua visão do mundo. Aquilo confirmou: ela precisava ir. Precisava tentar.
Mas antes disso, os pais de Davi vieram visitá-la e, empolgados, insistiram para que ela fosse a um evento importante da empresa dele. Disseram que seria uma ótima chance de reencontro, que Davi estava passando por um momento de transição e que seria bom vê-la por lá. Por consideração a tudo que vivera com aquela família — e talvez ainda querendo ver por si mesma o que restava da promessa da infância —, ela aceitou.
O salão era luxuoso. Tudo tão sofisticado, tão planejado, que Luana sentiu-se deslocada. Estava linda, com um vestido azul escuro que ela mesma adaptara, mas ao olhar ao redor, sentia-se invisível. Quando Davi apareceu, o desconforto aumentou. Ele se aproximou, cumprimentou os pais com uma alegria ensaiada e, ao vê-la, limitou-se a um aceno tímido. Um beijo no rosto, frio, sem calor, sem verdade.
Luana tentou manter-se próxima, mas ele logo se afastou para conversar com colegas de trabalho. Um aperto cresceu em seu peito. Tentando entender aquela distância, seguiu os passos dele discretamente, até que parou ao lado de uma coluna decorada com flores altas e ouviu o que jamais deveria ter ouvido.
— ...aquela caipira? — Davi dizia, entre risos. — Meus pais ainda acham que vamos casar. Mas ela não tem nada a ver comigo. Vive num mundo de conto de fadas. É só uma obrigação familiar... não passa disso.
Foi como se o chão abrisse sob seus pés.
O ar lhe faltou. O coração disparou e os olhos arderam, mas ela não queria que ninguém visse. Saiu apressada do salão, empurrando a porta de vidro com força contida até alcançar o terraço. O vento da noite bateu em seu rosto, tentando levar com ele aquela dor. Mas não levava. A decepção doía mais do que qualquer outra coisa.
Ela estava ali, abraçada a si mesma, tentando se recompor, quando ouviu uma voz familiar atrás de si.
— Luana?
Ela virou devagar. Era Pedro — o rapaz do café —, elegante, mas com aquele mesmo olhar gentil e atento.
— Você está bem? — perguntou, se aproximando com cuidado.
Luana hesitou por um instante, mas sua garganta já não aguentava mais engolir palavras. Com um nó na voz, respondeu:
— Eu escutei... escutei ele falando sobre mim. Me chamando de caipira... como se eu fosse um estorvo. Como se eu não significasse nada.
Pedro franziu o cenho, a expressão entre incredulidade e indignação.
— Luana... você não merece ouvir isso de ninguém. Muito menos de alguém que deveria te valorizar.
Ela assentiu, tentando conter as lágrimas, mas uma delas escapou. Pedro, então, tirou um lenço do bolso e lhe ofereceu, num gesto delicado e silencioso. Ficaram ali por alguns minutos, sem dizer mais nada. Apenas respirando o mesmo ar e dividindo o silêncio confortável de quem não exigia respostas.
Até que a porta do terraço se abriu abruptamente.
— Luana? — era Davi, com a voz dura e irritada. — O que você está fazendo aqui fora? E com... ele?
Ela se virou lentamente, como quem já não tinha mais nada a esconder.
— Seus pais me trouxeram — respondeu com calma. — Achei que você soubesse.
— Eu... eu não sabia que viria. Podia ter avisado — rebateu ele, num tom ríspido, incomodado com a presença de Pedro.
— Não se preocupe. Eu não vou atrapalhar sua festa.
— Quer que eu peça um carro? Pra você e pros meus pais?
Antes que Luana respondesse, Pedro deu um passo à frente, a voz tranquila, mas firme:
— Eu posso levá-la pra casa, se ela quiser.
Luana olhou para Pedro. O olhar dele não tinha pressa, nem intenção. Era apenas respeito. E ali, naquela troca silenciosa, ela entendeu que era hora de escolher.
— Sim — respondeu. — Eu quero ir embora. Com você.
Davi permaneceu parado, confuso, sem saber o que dizer.
Ela passou por ele sem olhar para trás. Pela primeira vez, não se sentia pequena. Sentia-se livre.
E ali, ao descer as escadas ao lado de Pedro, deixando para trás o salão, os sorrisos falsos e uma história que já não a pertencia, Luana finalmente respirou fundo.
Era o começo do fim. Ou talvez, o começo de tudo.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 41
Comments
rita freitas
Que história linda!!! Viva o recomeço e muito sucesso
2025-06-02
0