Luz entre as Sombras

O ateliê improvisado no sótão da casa dos pais de Luana tornara-se seu refúgio mais íntimo. Cada objeto ali — dos pincéis manchados às telas em branco — pulsava com a essência de sua alma criativa. A luz que entrava pela pequena janela de madeira, ao entardecer, tingia o espaço com um dourado suave, revelando as partículas de poeira que dançavam no ar, como se até o tempo desacelerasse para contemplar sua arte nascer.

Ali, entre o cheiro adocicado do óleo de linhaça e a nota picante da terebintina, Luana era mais do que ela mesma — era livre. Seu mundo cabia naquelas pinceladas que escorriam dos dedos com uma urgência viva, quase sagrada. Pintava campos dourados ao pôr do sol, árvores antigas com troncos retorcidos que pareciam carregar histórias, borboletas translúcidas que um dia tentara prender entre as mãos de criança, sem saber que liberdade não se aprisiona.

Em cada tela, ela depositava um fragmento do que sentia, uma tentativa honesta de transformar emoções em cor, porque às vezes as palavras simplesmente não davam conta.

As aulas na pequena escola de arte da cidade passaram a ser o ponto alto de sua semana. Absorvia tudo — técnicas, histórias, texturas — com a sede de quem finalmente encontrara um norte. Via nas explicações de Dona Helena, sua professora de olhar atento e mãos enrugadas, mais do que teoria: via possibilidade.

“Você tem um dom, Luana,” dizia Dona Helena, encarando uma de suas telas com olhos marejados. “Suas cores têm alma. Suas linhas contam segredos que a gente não sabia que precisava ouvir.”

Essas palavras ecoavam dentro dela por dias. Alimentavam uma confiança tímida, mas crescente. Pela primeira vez, o futuro parecia mais do que um lugar onde Davi existia. A cidade, antes símbolo de distância e saudade, tornava-se agora cenário de seus próprios sonhos. Um centro de cultura efervescente, onde sua arte poderia florescer — onde ela poderia ser mais do que a menina que esperava por alguém.

Passava horas pesquisando na internet, encantada com galerias, universidades, movimentos artísticos. O universo que se descortinava diante dela era vasto, vivo, cheio de possibilidades. Estudar com grandes mestres, expor ao lado de artistas consagrados... Aquilo a incendiava por dentro. Queria mais. Precisava mais.

As mensagens de Davi, porém, vinham cada vez mais esparsas. Algumas ligações, cartas apressadas, áudios curtos e sem entusiasmo. Ele falava da correria no trabalho, dos happy hours que “precisava” frequentar, do cansaço que o consumia. Sua voz, antes doce e familiar, agora soava arrastada, como se estivesse sempre longe — mesmo quando dizia sentir saudade.

“Está puxado demais,” ele disse em uma ligação rápida, a voz abafada. “Às vezes, nem sei como chego em casa.”

Luana apertou o celular contra o ouvido, tentando escutar entre as pausas o que ele não dizia.

“Sinto sua falta...” murmurou, engolindo a vontade de chorar.

Houve silêncio do outro lado. Um daqueles silêncios que dizem tudo. Finalmente, Davi respondeu, sem emoção:

“Também sinto a sua. Mas... preciso focar aqui agora. É importante pro nosso futuro.”

Nosso. Uma palavra que soou protocolar, sem a força de antes. Como se o futuro que ele tanto buscava tivesse deixado de incluí-la de verdade.

O vazio após o fim da ligação ficou reverberando nela. Era como ler uma carta escrita às pressas, sem carinho. Como um abraço dado com um braço só.

Foi então que surgiu o anúncio do concurso de arte local. Uma pequena oportunidade, mas que brilhou aos olhos de Luana como um raio de sol em tarde nublada. Pensou em desistir. Achava que ainda não era boa o suficiente. Mas as palavras de Dona Helena — e aquela necessidade profunda de se provar — a convenceram.

Inscreveu uma de suas obras favoritas: um pôr do sol carregado de emoção, vibrante como sua vontade de recomeçar.

No dia da exposição, o coração batia como se tivesse vida própria. As obras dos outros artistas a intimidavam e encantavam. Mas, quando seu nome foi anunciado como vencedora do primeiro lugar, uma emoção intensa tomou conta dela.

Incredulidade. Orgulho. Alegria pura.

“Eu sabia!” disse Dona Helena, abraçando-a com ternura e euforia. “Esse é só o começo, minha menina.”

Naquela noite, com o troféu nas mãos e os olhos marejados, Luana sentiu — com todas as células do corpo — que tinha uma voz própria. Que seu brilho não precisava vir de ninguém além dela mesma. A cidade, agora, era destino por escolha. Não por amor ferido, mas por amor próprio.

Mesmo assim, antes de dar o passo definitivo, precisava ver Davi. Precisava entender, com os próprios olhos, o que ainda havia — ou não — entre eles. Pegou parte do dinheiro que ganhara com alguns desenhos vendidos e embarcou em um ônibus na manhã seguinte, levando na bagagem uma mala pequena e um coração pesado de esperanças e temores.

A chegada à cidade foi um soco nos sentidos. Barulho, pressa, prédios tão altos que pareciam engolir o céu. Ela se sentiu minúscula. Atravessar avenidas e localizar o prédio de Davi foi uma pequena saga. Quando enfim chegou, o porteiro mal ergueu os olhos, e o elevador de serviço parecia mais um beco com botões.

Quando Davi abriu a porta, seu espanto foi visível, mas não caloroso. Vestia uma camiseta amassada e parecia perdido em meio a um apartamento escuro e desorganizado. Pilhas de pratos sujos na pia, roupas jogadas como se não houvesse tempo nem vontade de viver ali.

“Luana? O que você está fazendo aqui?” A voz dele soou mais irritada do que surpresa.

Ela sorriu, tentando manter o entusiasmo. “Vim te ver. Senti sua falta.”

Ele suspirou, cansado. Passou a mão nos cabelos desgrenhados.

“Você devia ter avisado. Tô cheio de coisas.”

O balde de água fria caiu sem piedade. Mas ela insistiu, tentando não deixar transparecer a dor.

“Queria fazer uma surpresa.”

A visita foi desconfortável. Ele parecia inquieto, como se estivesse preso ali com ela. Mal olhava nos olhos dela. No restaurante para onde a levou — barulhento, impessoal, cheio de telas e ruídos — a conversa foi trivial. Nenhum toque. Nenhum sorriso que dissesse “estou feliz por você estar aqui”.

No dia seguinte, ele alegou ter uma reunião e a deixou sozinha no apartamento. Luana decidiu sair. Precisava respirar.

Caminhou sem rumo pelas ruas movimentadas, as vitrines brilhando como promessas vazias. Em uma rua tranquila e charmosa, encontrou um pequeno café com toldo listrado e mesas na calçada. Um alívio em meio ao caos. Pediu um café e um pedaço de bolo. Sentou-se, sentindo-se, enfim, consigo mesma.

Foi então que Pedro tropeçou perto de sua mesa, derrubando alguns papéis.

“Ah, me desculpe!” disse ele, agachando-se apressado.

Luana abaixou-se para ajudar, sorrindo. “Tudo bem. Acontece.”

Ao recolher os papéis, notou esboços de desenhos. Interessantes. Vivos.

“Sou Pedro,” ele disse, já de pé, com um sorriso gentil.

“Luana,” respondeu, apertando a mão que ele lhe estendia.

Conversaram por alguns minutos. Ele era simpático, de olhos castanhos claros e fala suave. Comentou sobre o café, sobre a cidade, perguntou se ela estava de passagem. Nada invasivo. Apenas... agradável.

Quando ele se despediu, com um sorriso e um aceno, Luana ficou ali por alguns instantes, olhando o movimento da rua e sentindo algo curioso: leveza.

Não havia segundas intenções, nem promessas. Apenas um gesto simples de gentileza. E isso bastou para que algo dentro dela se acendesse. Um lembrete de que o mundo ainda podia ser bonito, mesmo em sua confusão. E que talvez... talvez a cidade pudesse acolher também outras formas de conexão — mais doces, mais honestas — como ela merecia.

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Comments

magali Ferreira

magali Ferreira

Gostando muito , começando a ler , vamos ver kkkkk

2025-06-03

0

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