O beijo da morte

— Eu não gosto da roda-gigante, pai. Tenho medo de altura — disse a menina de 11 anos, a voz trêmula enquanto avançava na fila com passos hesitantes.

— Não precisa ter medo, o papai tá aqui com você — respondeu Edward, os óculos escorregando ligeiramente no nariz, o casaco preto ocultando mais do que o frio. Naquela época, Andréa ainda era incapaz de enxergar a escuridão por trás daquele sorriso paterno.

Entraram no vagão. Antes de a roda girar, a menina acenou timidamente para a mãe que aguardava no chão, alheia ao que estava prestes a acontecer. O brinquedo começou a subir. Andréa, tomada pelo pavor, largou o banco oposto e se aproximou do pai. Sentou-se ao lado dele, buscando proteção.

Era tudo o que Edward queria.

Um psiquiatra renomado, Edward Moura cultivava uma filosofia perversa: acreditava que o ser humano só poderia curar a própria mente mergulhando em sua escuridão. Para ele, como já afirmara Hobbes, “o homem é o lobo do homem”. E agora, a bordo de um brinquedo infantil, ele se preparava para libertar o monstro que alimentava em silêncio, nos textos sombrios que escondia no computador.

A roda parou no alto. Estática, silenciosa. Como se o tempo tivesse prendido a respiração.

— Droga — disse uma adolescente no vagão abaixo. — Aquela mulher... ela se jogou!

Mas não. Ela fora empurrada.

O murmúrio se espalhou. As luzes da roda piscavam de modo estranho. O vento parecia sussurrar.

Edward ouviu. Sentiu. Viu naquilo a oportunidade perfeita. Andréa, distraída com o movimento das pessoas abaixo, não percebeu quando o pai se virou em sua direção. O sorriso gentil já não estava mais ali. No lugar, um olhar faminto. O circo de horrores havia começado.

Mas então... tudo se distorceu.

Edward Moura se desfez na sombra, e dela emergiu Dante Navarro. Um homem de 28 anos, de presença esmagadora. Ele se aproximou de Andréa, agora adulta, e mordeu-lhe o pescoço.

Ela acordou com um grito preso na garganta.

Suor. Frio. Ofegante.

Era só um pesadelo... Mas a lembrança era real. Agora ela sabia: a roda gigante havia parado misteriosamente naquele dia — e talvez, se não tivesse parado, o abuso teria acontecido mesmo assim. Seu pai encontraria outra hora, outro lugar. Sempre encontrava.

Mesmo morto, Edward ainda a perseguia.

Na manhã seguinte, após deixar sua filha Milena no jardim de infância, a psiquiatra retornou à prisão. O interrogatório daquele dia não seria na sala comum. Disseram que ela deveria ir até a solitária, onde Dante Navarro estava isolado. A justificativa? “Motivos internos”.

Caminhou pelos corredores da prisão com a cabeça erguida. Os detentos a fitavam com ódio e desejo. Comentários vis e xingamentos a acompanhavam como um coro grotesco. “Gostosa”, “entra aqui”, “vem sentar no meu colo”.

Ela não fraquejava. Ao contrário, seus passos firmavam-se no chão como punhais.

Chegou à solitária. Algo não estava certo.

A porta já estava aberta.

O guarda que a acompanhava desapareceu sem deixar rastros. Ao entrar, a sensação de perigo era tão densa que quase podia tocá-la.

Dante estava de pé. As mãos, livres.

— Doutora — disse, com um sorriso gélido. Tirou os pulsos de trás das costas, revelando-se desalgemado.

Andréa recuou instintivamente, indo até a porta. Mas ela se fechou com um estalo. Trancada.

— O guarda me devia um favor — murmurou Dante, aproximando-se lentamente.

— O que significa isso?! — ela perguntou com firmeza, escondendo o pânico.

— Sabe quem eu sou?

Ele a encurralou contra a parede, os braços formando uma prisão invisível.

— Então deveria ter medo de mim.

— Quem se entrega a medos vazios... — começou Andréa, tentando manter o controle — não conhece a força que nasce da dor.

— Está citando Sêneca? — ele riu. — Sabe qual a diferença entre nós, doutora? Você costura suas feridas. Eu deixo as minhas sangrar. Somos extremos de uma mesma moeda.

Ele se aproximou ainda mais. Tocou a testa dela com o dedo.

— Eu estava lá naquele dia... na roda gigante. Alguns vagões abaixo. Quando a polícia me tirou para fazer perguntas, vi você com seu pai. Sua expressão... era a mesma da minha irmã, pouco antes de eu jogá-la lá de cima.

— Eu não sou sua irmã — retrucou Andréa, os olhos queimando de fúria.

— Não, você não é — ele sussurrou. — Você é melhor. Uma mulher inquebrável. E eu admiro isso.

Dante inclinou-se. Seus rostos estavam a centímetros de distância. Andréa podia sentir o hálito quente dele.

— Me odeia?

— Talvez...

— Não. Você sente mais do que ódio. Você sente... isso.

E então, ele a beijou.

Não foi brutal. Foi lento. Quase reverente. Como se saboreasse cada segundo, cada milímetro de seus lábios. Por um instante, Andréa cedeu. Depois, empurrou-o com força.

Portas se abriram bruscamente. Guardas invadiram a cela, armados, ouvindo os gritos da doutora. Arrancaram Dante de cima dela enquanto ele se debatia, frustrado. A voz dele ecoava nos corredores, amaldiçoando e rindo ao mesmo tempo.

Andréa saiu da cela. Parou no corredor. Levou os dedos aos lábios. Eles ainda ardiam.

Mas não era desejo. Era raiva.

E talvez... algo pior.

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