Acordei no churro. Literalmente. O sol se enfiava pela fresta da cortina como se tivesse permissão. Me estiquei na cama como um cadáver que resolve levantar do caixão porque esqueceram a tampa aberta. O relógio do celular marcava 14h47. Quase três da tarde. E a reunião era às cinco. Ótimo. Pelo menos não perdi o horário. Não queria ser a brasileira folgada já no primeiro dia. Só depois.
Levantei com o corpo ainda mole de viagem, peguei minhas coisas e fui pro banheiro. A água quente caiu como uma benção pagã. Eu, que nunca fui religiosa, agradeci à ciência pela invenção do chuveiro. Enquanto lavava o cabelo, pensei na Regina. Aquela mulher era um poço de santidade de fachada. Fez meu inferno com versículos e falso moralismo. Nem Deus devia aguentar ela. Foi por causa dela que eu saí de casa. Que eu saí do país. Que eu saí da porra toda.
Me enrolei na toalha e fui escolher a roupa. Podia ir como uma boa garota, de calça social e blusinha de botão. Mas honestamente? Foda-se. Eu não vim até a Coreia pra ser mais uma boazinha que abaixa a cabeça. Puxei minha saia prensada, bem curta. Meia arrastão, com um rasgo na parte de trás. A bota preta de cano grosso, aquela que parece que vai pisar em alguém e depois continuar andando como se nada tivesse acontecido. E uma camiseta do Pink Floyd, tamanho grande, que quase cobria tudo. Era o tipo de roupa que faria minha madrasta me exorcizar se me visse. Perfeita.
Saí e segui o caminho indicado até o prédio da Big Hit, agora HYBE, mas vou continuar chamando de Big Hit só de teimosa. O apartamento onde eu fiquei era minúsculo, mas grudado na empresa. Dava pra ouvir o ar-condicionado do prédio deles da minha janela. Ainda assim, tava melhor que muita coisa que vivi. Então, aceitei.
Chegando lá, me mandaram subir pro nono andar. A sala da reunião era de vidro, elegante até demais, e tinha um homem sentado já me esperando. Era um senhor de cabelo grisalho, olhar analítico e roupas sóbrias. Provavelmente alguém que já trabalhava ali há décadas. Me sentei na cadeira de frente pra ele sem dizer nada.
— Joyce, certo?
— Depende. Se for coisa ruim, é a do lado. Mas se for salário, sou eu mesma.
Ele deu uma risadinha contida. Homem educado, daqueles que engolem o que pensam. Me explicou que eu ia participar na composição de faixas instrumentais, trabalhar na ambientação emocional de algumas músicas novas. Não era pra cantar, não era pra dançar, graças aos céus. Eu era boa com som, não com palco.
— Você vai colaborar com um dos artistas. Ainda estamos definindo a abordagem criativa, mas ele está bastante animado.
— Artista? Qual deles?
— Do BTS.
— Sério que eu vou trabalhar com eles? Eu nem sei os nomes. Juro. Não sei distinguir quem é quem. Pra mim é tipo Power Rangers — um monte de homem bonito fazendo pose.
Ele engoliu seco. Achei que ia me dar um sermão. Mas só ajeitou os óculos.
— Vai trabalhar só com um deles.
— Um? Melhor ainda. Menos problema.
E foi aí que a porta abriu. E entrou ele.
Kim Taehyung.
O tal do V.
A primeira coisa que pensei foi: caralho.
A segunda coisa: não dá pra matar esse cara. A justiça coreana é eficiente.
Era bonito demais. Um tipo de beleza que chega a ser ofensiva. Forte, definido, com aquele cabelo laranja bagunçado que dava vontade de perguntar se ele tinha saído do clipe ou da cama. Sério. O cabelo parecia aquele menino ruivo, o filho da Mavis no Hotel Transilvânia. Só que crescido. E gostoso.
Só que o sorriso. Ah, o sorriso. Aquele sorriso quadrado demais. Felicidade demais. Ele sorria como se o mundo não tivesse nenhum imposto ou gente ruim. Eu, que sempre fui sombra, me senti quase ofendida por tanta luz. A camisa dele era toda engomada, os botões parecendo que iam pedir desculpa por estarem ali. Ele parecia um personagem de época. Um dos Bridgerton. O tipo de homem que segura a mão da mulher e pede permissão pra beijar. Se meu pai visse, diria que ele estava muito bem-vestido. E meu pai tem 67 anos.
Mas o que me pegou mesmo foi o jeito que ele me olhou.
Não foi de cima a baixo. Não teve aquele julgamento escondido. Não teve aquele "nossa, essa aí é problemática". Ele olhou como se eu fosse normal. Como se meu look fosse só mais um look. Como se a camiseta do Pink Floyd não gritasse "não me toque". Ele me olhou e sorriu como se eu fosse só... uma garota.
— Oi — ele disse, em coreano, com aquele tom calmo e grave.
— E aí — respondi, também em coreano. Meu sotaque ainda era meio rígido, mas dava pro gasto.
Ele se aproximou e cumprimentou o homem da mesa. Depois, sentou na cadeira ao meu lado. Eu olhei pra ele de canto de olho.
Braços fortes. Pulso com veias. Mão de quem toca instrumento. Rosto de quem sabe que é bonito, mas não faz esforço. Postura de cavalheiro. Voz de veludo. Olhos de bicho curioso.
Droga.
Ele parecia legal.
E isso era um problema.
Eu sou boa lidando com gente escrota. Sei devolver na mesma moeda. Sei fechar a cara. Mas gente legal? Me desarma. E ele parecia genuinamente legal. Genuinamente curioso. Genuinamente disposto.
— Vai ser um prazer trabalhar com você — ele disse, e eu quase ri.
— O prazer é todo seu — soltei, sem nem olhar pra ele.
Ele riu.
Filho da mãe ainda achou graça.
A conversa seguiu. Definiram horários, tarefas, expectativas. Eu fiquei calada a maior parte do tempo, só absorvendo. Mas uma coisa era certa:
Vai ser uma longa temporada.
E se eu não matar esse Mauricinho antes do primeiro mês, vai ser por misericórdia divina.
Ou porque o sorriso dele me feriu menos do que eu achei que feriria.
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Atualizado até capítulo 36
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