que não sejam meus órgãos

Aeroporto de Incheon. Luzes, vozes, anúncios em línguas que pareciam cuspidas do outro lado do planeta. O cheiro era diferente, o chão era diferente, até o ar parecia mais limpo. Mas meu estômago revirava como se eu estivesse em cima de uma montanha-russa.

Olhei em volta, tensa. Tudo naquela multidão gritava perigo, mesmo com as famílias felizes, os turistas bobos com seus pauzinhos de selfie e as crianças de mochilas com bichinhos pendurados. Quanto mais fofo parecia, mais perigoso eu achava.

— Senhor... — murmurei baixo, só pra mim mesma — Se tu existir mesmo aí em cima... não deixa ninguém roubar meus órgãos, beleza? Nem sou religiosa. Cê sabe. Culpa da Regina. Mas agora é questão de sobrevivência.

A Regina sempre gritou pros céus que eu era feia, que eu era ruim, que eu ia queimar no inferno. Com aquele teatrinho de santa dela, que não enganava nem o diabo. E agora aqui estou eu. Em outro país. Sozinha. E orando.

Vi a placa antes de qualquer outra coisa. “Joyce Ferreira”. Placa branca, letras grandes. O cara que segurava era certinho demais. Camisa branca passada, cabelo arrumado, sorriso simpático que dava vontade de socar só pra testar se era real.

Andei direto até ele. Parei em frente. Não sorri.

— Você é a Joyce? — ele perguntou.

— Tá vendo alguém do seu lado? — respondi seco, arqueando a sobrancelha. — Sou eu.

Ele pareceu engolir a saliva. Deu um risinho sem graça, meio nervoso. Já entendeu que não tava lidando com florzinha.

— Prazer... Eu sou Jinsoo, da equipe da BigHit. Vim te buscar.

Assenti com a cabeça. Sem papo furado. Ele pegou minha mala com todo o cuidado do mundo, como se ela fosse uma bomba prestes a explodir. Talvez fosse. Vai saber.

Seguimos pro carro. O caminho até a HYBE foi um borrão de prédios altos, ruas limpas, placas coloridas e gente demais andando rápido demais. Eu mal piscava. As avenidas pareciam de filme futurista. Luz pra todo lado.

— Você parece cansada — ele tentou puxar conversa.

— Parece não. Eu tô — respondi, sem tirar os olhos da janela.

Jinsoo calou a boca e fez o que tinha que fazer: dirigir.

No caminho, vi uma mulher puxando o filho pela mão. O moleque devia ter uns cinco anos. Chorava porque queria ficar vendo alguma coisa na vitrine. A mãe parou, abaixou, disse algo baixinho e limpou o rosto dele com as mãos. Senti o nó na garganta. E odiei isso.

— Que saco... — murmurei. — Nem posso ver uma cena boba que já fico mole. Tô muito fraca.

O carro parou num prédio cinza claro, moderno, mas discreto. A recepção da HYBE parecia saída de um jogo de realidade virtual. Branca, imensa, limpa como se ninguém respirasse ali.

— Aqui é o seu dormitório provisório. Fica do lado do prédio principal da HYBE. A maioria dos funcionários novos fica aqui até arrumarem algo definitivo — explicou Jinsoo.

— Tá.

O apartamento era minúsculo. Uma cama de solteiro, uma mesa, uma cadeira, uma mini-cozinha e um banheiro apertado. Mas limpo. Tudo muito limpo. E silencioso. Tão silencioso que doeu no ouvido.

Jinsoo deixou minhas coisas com cuidado. Me olhou como se quisesse dizer algo, mas não disse. Inteligente.

— Amanhã te buscam pra uma reunião. Descansa hoje, o fuso horário pega pesado no começo.

— Não se preocupa, Jinsoo. Eu sou mais pesada que qualquer fuso.

Ele riu nervoso e foi embora. Tranquei a porta com pressa. Girei a tranca duas vezes. Encostei as costas na madeira e respirei fundo.

— Se for sequestro de órgãos, pelo menos eu durmo antes.

Joguei a mochila no chão, tirei os tênis e me joguei na cama. Nem liguei a luz. A cidade lá fora piscava pela janela. Cores estranhas, sons abafados, e eu ali... viva. Só isso. Viva.

Talvez pela primeira vez.

Fiquei olhando pro teto.

— Aqui eu fico.

A Coreia não era um sonho. Não era um plano. Era uma fuga. Mas quem disse que fugas não salvam a gente? Se tudo desse errado, virava faxineira. Caixa de mercado. Qualquer coisa.

Só não voltava. Nunca mais.

Meu pai? Amo. Muito. Mas ele nunca me defendeu. Nunca me protegeu da mulher que fez da minha vida um buraco. Amor que não defende é covardia.

Então aqui era meu lar. Não importa por quanto tempo.

Aqui ninguém me conhecia. Ninguém tinha medo da minha boca suja ou das minhas roupas pretas. Aqui eu podia ser qualquer coisa. Inclusive perigosa. E eu gostava disso.

Gente perigosa sobrevive mais.

Fechei os olhos. Um leve sorriso se formou. Não de alegria. De alívio. De vingança. De liberdade.

Eu tava longe da Regina. Longe dos olhares que me julgavam.

E mais perto de ser quem eu quisesse ser.

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