O carro da minha sogra estacionou como se fosse um enterro. Não de alguém morto. Mas de algo que precisava morrer. Tipo a minha paciência.
Ela não permitiu que meu pai me levasse ao aeroporto. Disse que se acontecesse alguma coisa comigo e com ele no mesmo dia, “nunca se perdoaria”. Ah, claro. A mulher que me chamava de peste desde os dez anos de idade agora queria bancar a sensível. Vai se ferrar.
— Vai com Deus, Joyce — disse ela, com aquela voz irritante de falsa cristã, mãos cruzadas no colo como se eu não soubesse quantos demônios habitavam ali.
— Deus deve estar ocupado tentando me salvar de ti, Regina — respondi, com meu típico sorrisinho torto. O mesmo que faz qualquer um pensar duas vezes antes de continuar uma conversa comigo.
A porta do carro bateu atrás de mim, alto. De propósito. Eu queria deixar minha última marca naquele banco de couro vagabundo que ela sempre esfregou na minha cara como se fosse realeza.
Meu pai... ah, meu pai. Ele me abraçou antes de sairmos de casa. Eu disse que não queria drama. Ele respeitou. Disse só:
— Você vai vencer, minha filha. E se der errado, sua cama vai estar aqui.
Abracei. Curto. Seco. Do meu jeito. Sem lágrima. Porque, honestamente, eu nem lembro mais como é chorar. Me ensinaram cedo que choro não resolve porra nenhuma.
Agora, arrastando minha mala pesada e meu case com minha guitarra sagrada, entrei no aeroporto como quem invade território inimigo. A galera na fila olhou como se eu fosse um ET — preta dos pés à cabeça, bota de couro, maquiagem escura, delineado cortando até a alma e um olhar de quem já matou um no café da manhã.
As rodas da mala emperraram e eu já senti que ia começar bem.
— Porra, só falta essa merda quebrar agora — resmunguei, chutando a lateral com raiva. A mala colaborou, tremendo como se tivesse medo de mim. Ótimo. Que aprendesse desde cedo.
No balcão, a funcionária sorria como se eu tivesse cara de quem aceita sorriso gratuito. Dei meu passaporte, bilhete, tudo que precisava. Ela piscou nervosa. Fiz questão de manter meu olhar fixo, sem piscar, até ela parar de sorrir. Funcionou.
Segui pra esteira de embarque. Aquele idiota responsável pelas bagagens se aproximou. Um moleque de uns vinte e poucos anos, cabelo mal pintado, usando uma luvinha que não escondia a falta de noção.
— Moça, deixa que eu levo.
— Toca na minha guitarra e eu enfio o cabo dela na tua goela.
Ele travou. Literalmente. As mãos congelaram no ar. A testa suou em tempo recorde. Se tivesse um termômetro emocional, ele tava em colapso.
— Eu... eu só queria ajudar.
— Ajuda é não encostar. E se tiver um arranhão nela, eu quebro o resto da esteira na sua cabeça.
Fiz questão de mostrar meu sorriso mais doce. Aquele que precede um apocalipse pessoal. Ele recuou dois passos. Senti a alma dele saindo pela sola do tênis. Foi delicioso.
Era isso que me protegia. O medo. O respeito forçado. A minha aura de quem já viu o inferno e mandou ele se foder com estilo.
Entreguei minha guitarra com os olhos. Tipo: “encosta e morre”. O cara pegou como se segurasse uma bomba. Boa escolha.
Na sala de embarque, sentei isolada. Um canto só meu. Tinha uns casais, umas famílias, gente demais. Fiquei com fone no ouvido, mas sem música. Só pra ninguém puxar assunto. Funcionou.
Quando chamaram meu voo, meu coração acelerou. Era isso. A porra da Coreia me esperava. A Big Hit tinha me chamado. Eles queriam minha cabeça musical, minhas mãos nos instrumentos, minhas ideias. Duas faculdades nas costas, anos de luta, noites em claro ouvindo Slipknot até explodir. Era a minha chance.
Olhei pra janela, o avião gigante parado na pista. E pela primeira vez em anos... eu senti vontade de chorar. De verdade. Mas não chorei. Porque eu não faço isso. Eu engulo. Eu sobrevivo.
— Que seja agora ou nunca — murmurei, pegando minha mochila.
Na fila de entrada, a aeromoça sorriu.
— Seja bem-vinda a bordo.
— Só não encosta, tá? Tô armada de ironia.
Ela riu sem graça. Passou o bip, deixei meu passaporte, sentei na cadeira e fechei os olhos.
“Senhor, se for pra roubarem meus órgãos, que deixem pelo menos meu cérebro intacto. Eu ainda preciso dele.”
Suspirei fundo. Senti o avião começar a andar. Não olhei pra trás. Não queria saber da cidade, da casa, da Regina. Já era. Se eu tivesse que voltar pra aquele lugar, eu juro que explodia tudo. Comigo dentro.
Mas agora, era só o céu.
E uma mulher com o passado queimando nas costas, tentando voar pela primeira vez.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 36
Comments