um adeus que veio tarde demais

Me diz uma coisa: quem foi que decidiu que família é sinônimo de amor? Porque, se for, a minha veio com defeito de fábrica. Não que eu esteja reclamando — não mais, pelo menos. Hoje é o dia em que eu finalmente dou o fora dessa casa. Um milagre disfarçado de e-mail internacional, com passagem só de ida pro outro lado do mundo. A Coreia do Sul pode nem saber o que a espera, mas eu tô indo assim mesmo. E vou sem olhar pra trás.

O zíper da minha mala grita quando fecho a última aba. Grita mais do que a Regina quando meu pai diz "não" pra ela — e isso, meu bem, é raro. Só que hoje, ela ouviu. Pela primeira vez em anos, ele olhou pra aquela mulher como se tivesse acordado de um coma. Eu quase bati palma.

Meu quarto é um mausoléu dos meus dias de resistência. As paredes ainda têm os pôsteres do Slipknot, Paramore, Evanescence, Pink Floyd… todos colados com fita adesiva, como se quisessem me manter viva quando tudo aqui dentro tentava me matar. A cadeira quebrada, o violão com corda estourada jogado no canto, o perfume velho da infância que eu escondi no fundo da gaveta... Tudo tem o peso de quem sobreviveu por mais de quinze anos sob o mesmo teto que uma víbora com salto alto e voz de santa de igreja evangélica.

Desde os dez anos eu aguento Regina Salles. A madrasta perfeita — no papel. Por trás da maquiagem cara e da fala doce, ela é o tipo de mulher que sorri enquanto envenena seu copo de suco. E o pior? Meu pai sempre soube. Sabia e não fazia nada. O velho era apaixonado, do tipo que aceitaria ser esfaqueado com um sorriso se fosse ela quem segurasse a faca. Amor demente, doente. Patético.

— Vai mesmo embora com essa gente que tu nem conhece? — a voz de Regina atravessa a porta entreaberta. Ela não bate. Nunca bateu. Ela invade.

— E tu vai mesmo continuar sendo amarga sozinha? — respondo sem virar o rosto. — Porque papai não vai aguentar isso por muito mais tempo.

Ela estufa o peito. Os olhos dela têm veneno. Mas eu tô imune.

— Isso é golpe. Golpe internacional. Tu vai acabar sem rim em algum beco de Seul.

— Pra tua tristeza, Regina, vão ter que trabalhar muito pra me pegar. E com essa língua aqui, eu boto qualquer sequestrador pra correr.

Ela vai embora pisando duro. Parece uma galinha de salto. Patética. Ela não me suporta porque nunca conseguiu engravidar. Tentou. Tentou tanto que quase virou experimento de laboratório. Mas nada. E na cabeça dela, o filho que ela nunca teve é o motivo do meu pai ainda me olhar com carinho. Como se eu fosse rival dela. Uma menina de dez anos. Dá pra acreditar? Freud faria festa com isso.

Meu pai me deu um abraço quando soube que eu ia embora. Um abraço que dizia: “desculpa por tudo que eu deixei acontecer contigo”. Não falou com palavras, porque ele nunca soube falar. Mas eu li no corpo dele. E foi o suficiente.

A BigHit mandou o contrato por e-mail. Dois cursos de música, especialização em produção instrumental, e eu finalmente fui notada. Eles precisam de alguém que entenda o som. E eu entendo. Porque eu sou o som. Eu respiro bateria, baixo, guitarra, distorção, pedal. Se amor não me fez viver, o rock fez. E agora é a minha chance.

— Tá levando tudo? — a voz do meu pai é baixa. Hesitante.

Me viro devagar. Ele tá na porta, com os olhos úmidos.

— Tô levando o que é meu. O que presta. O resto, eu deixo pra trás.

Ele engole seco. Não sabe o que dizer. Então diz a única coisa que me desmonta um pouco:

— Você sempre foi maior que isso aqui.

Eu abaixo o olhar. Trinta segundos de fraqueza. Só isso.

— Eu só quero respirar, pai. Só isso.

Ele assente. Eu vejo a dor nos olhos dele. Mas também vejo alívio.

Deito na cama uma última vez. O colchão afunda nos mesmos lugares de sempre. O ventilador de teto ainda faz aquele barulho de hélice solta. Nada mudou. Mas tudo está prestes a mudar.

“Se não der certo, eu volto”, penso. Mas é mentira. Se não der certo, eu invento um novo jeito de dar certo. Porque voltar não é uma opção. Não mais.

Regina tentou destruir minha identidade, mas tudo o que ela fez foi temperar o aço. Hoje eu sou navalha. Hoje eu sou Joyce.

E que o mundo se prepare.

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