A luz do vitral tingia tudo de vermelho quando Kael se afastou da cama. Suas costas eram largas, marcadas por cicatrizes antigas. Ele caminhou até uma lareira apagada e acendeu a lenha com um fósforo — o estalo seco me pareceu uma explosão num mundo onde tudo era silêncio.
— Você vai me manter presa aqui? — perguntei, apertando os lençóis contra o corpo. Minha voz saiu firme, mas as mãos tremiam.
Ele não respondeu de imediato. Pegou uma jarra de prata sobre uma mesa baixa e encheu uma taça com um líquido âmbar.
— Bebida? — ofereceu, sem se virar.
— Me leva de volta pra casa, Kael!
— Sua casa não existe mais — ele respondeu. — Não depois que você cruzou a fronteira.
— Que fronteira?
Kael virou-se devagar, apoiando-se na mesa. Seus olhos brilhavam, mas havia algo diferente neles agora. Menos selvageria. Mais tristeza. Ou cansaço.
— Aquela entre o mundo que você conhece… e o meu.
A raiva cresceu dentro de mim.
— Isso é ridículo! Você me sequestrou no meio da noite. Eu sou veterinária, moro em Belo Horizonte, minha mãe vai ligar pra polícia. Vai colocar sua cara em todo noticiário!
Kael deu um sorriso torto. Um canto da boca apenas.
— Duvido muito que alguém a procure.
Aquilo me atingiu como um tapa. Mas eu conhecia verdades desconfortáveis demais para negar. Meu trabalho consumia meus dias. Eu evitava contato com vizinhos. E minha mãe... bem, ela não ligava há semanas.
Engoli seco.
— Por que eu?
Kael se aproximou novamente. Sentou-se à beira da cama. A distância entre nós era um suspiro. Seu cheiro era forte — pinho, fumaça e algo mais profundo, mais animal.
— Porque você carrega o sangue. Um traço antigo que resistiu por gerações. Dormia em você... até que acordou. E nós sentimos quando isso acontece.
— Nós?
— Os Clãs.
Fechei os olhos por um segundo. Isso era um sonho. Só podia ser.
— E se eu disser que não quero isso? Que não quero você, nem clãs, nem rituais malucos?
Ele levantou lentamente, pegou uma manta escura dobrada sobre uma poltrona e jogou sobre meus ombros com um cuidado inesperado.
— Então fuja. O castelo não tem trancas. A porta está aberta.
Franzi o cenho. — Está brincando comigo?
— Não. Eu quero saber quem você é. Se correr... talvez não seja digna. Se ficar… talvez me destrua. — A voz dele abaixou de tom, quase um sussurro rouco. — As duas opções me servem.
E então ele saiu, como se tivesse dito algo tão simples quanto “bom dia”.
Fiquei sentada por um tempo. Os lençóis escorregaram de meu corpo quando me levantei. Enrolei a manta com força e fui até a porta.
Corredores de pedra, altos, com janelas longas e tapestrias que se moviam ao vento. Não vi guardas. Nem trancas.
Segui adiante. Desci uma escadaria em espiral, o som dos meus pés ecoando nas paredes. Até chegar ao pátio.
E ali, sob o céu escuro e a lua cheia, vi onde estava.
No alto de uma montanha. Um castelo antigo, perdido entre as nuvens. E lá embaixo, muito longe, as luzes de Belo Horizonte pareciam tão pequenas quanto vaga-lumes.
Que diabos de lugar é este? Não existem montanhas no Brasil! Será que foi isso que Kael quis dizer com "cruzar a fronteira entre os mundos"? Estou em outra dimensão? Essa ideia me congelou o sangue. Não era sonho, isso eu podia sentir. Este lugar, e tudo nele, é real!
Mas o que mais me arrepiou foi ver os olhos dourados me observando de longe, entre as árvores.
Kael não mentia.
A porta estava aberta.
Mas havia coisas muito piores que ele… esperando do lado de fora.
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Atualizado até capítulo 31
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