A Menina, a Morte e a Mariposa

Em dois anos, as coisas haviam mudado drasticamente, reformando o lugar que um dia fora o símbolo de sossego. O monstro vigiava nas sombras ao redor do vilarejo, proibindo qualquer ser vivo de entrar ou sair. As pessoas passavam mais tempo dentro de suas casas do que ao ar livre, as crianças já não brincavam, e nem mesmo se tinha notícias do bardo que tanto cantava, o silêncio se espalhava por toda a região. Enquanto isso, Eva teve aqueles visitantes alojados em sua morada por tempo o suficiente para entender como o mundo de fato funcionava. Em toda lua-cheia, a garota era forçada a beber aquele líquido estranho, no início sofria com muitas dores, vômitos e espasmos até que não sentiu mais nada.

Após ser machucada pelo monstro, a mãe abandonou sua personalidade, se tornando uma casca vazia, apenas acatando ordens com seus olhos mortos. Aquela já não era mais a mãe de Eva, mas sim o que restou dela. O pai havia perdido a capacidade de se movimentar de uma maneira ou de outra, usando os cotovelos e deixando de usar roupas. A corda nunca saiu do pescoço. O garoto encapuzado era o seu dono. Ele até mesmo acariciava a cabeça do homem enquanto dava restos de comida. Eva reprimia seu choro dia após dia na esperança de que suas lágrimas secassem para sempre. Durante a noite, ela sentia a presença doentia da estranha misteriosa ao lado de sua cama, enquanto mariposas negras voavam se empoleirando nas paredes rachadas. A menina não ousava respirar ou mover um único músculo, era como estar se afogando bem devagar porque aquela coisa a observava dormindo. Porém, ela aprendeu a se acostumar com aquilo também, às vezes até mesmo permitia que uma das mariposas pousasse em sua mão. Era um inseto pequeno com uma cor oscilando entre preto e cinza, além dos símbolos perfeitos em suas asas. Havia alguns momentos em que era possível respirar, a mulher e o garoto saíam para inspecionar cada casa do vilarejo. Eva foi até a sala na ponta dos dedos, a mãe estava sentada no chão com os braços em volta dos joelhos diante de uma vela trêmula que afastava a escuridão.

— O que a rainha Everly faria, mamãe? — se apoiou contra a parede e deslizou até estar ao lado da mãe.

— Não há nada que ela pudesse fazer — retrucou com seu olhar morto, cabelos desgrenhados no rosto. — Acredito que este seja o estado natural do mundo, minha filha, ele é cruel e é justamente por isso que continua evoluindo.

— Não entendi... — Eva pousou a mão sobre a de sua mãe, sentindo perfeitamente os ossos dela. — A senhora acreditava na liberdade, na paz, na rainha...

— Everly estava errada, querida, a natureza humana se baseia naquilo que queremos evitar. Guerras trazem melhorias como a paz, é impossível que reinos e impérios sejam criados de outro modo além de mortes. Quem garante que o reinado pacífico de Everly não foi conquistado da mesma forma?

— Precisamos acreditar em alguma coisa, mamãe — Eva limpou as lágrimas teimosas.

A mãe se levantou, os braços tão finos quanto gravetos, parecia estar morta há muito tempo. Apanhou uma faca consideravelmente grande sobre a mesa. Eva não entendeu no início, pensava que sua mãe fosse atacar os hóspedes quando retornassem, mas no fundo entendia o que estava acontecendo. Um grito ficou preso na garganta dela ao ver a mulher que a pôs no mundo enterrar a lâmina na própria garganta e se afogar em seu sangue com o corpo tombando para trás. De joelhos, a menina se encontrava perdida. A estranha misteriosa e o garoto arrastando seu pai pela corda retornaram para casa se deparando com o corpo largado ao chão com a faca presa a garganta, Eva via o sangue se espalhando. Deveria estar chorando em agonia, mas conseguia apenas ficar imóvel diferentemente do pai que voltou a agir como humano assim que se deparou com a morte em seu lar. Ele se arrastou com violência utilizando os cotovelos tentando inutilmente projetar algum som. O garoto não se importou em solta-lo. O pai deitou a cabeça sobre o peito da mãe como se quisesse escutar seus últimos batimentos. Naquele instante, Eva estudou o rosto contorcido de seu pai entendendo que aquela era a verdadeira expressão do ódio do qual eles tanto fugiram. A menina focou nos lábios dele e conseguiu entender o que dizia sem proferir nada: "me perdoe por ser fraco". Após suas últimas palavras, ele usou as mãos torcidas para se apoiar na mesa e avançar na direção daquelas pessoas com a intenção de agarrar o pescoço da mulher. Eva fechou olhos, se recusava a ver o destino do pai, mas não era muito difícil imaginar pelo barulho de ossos sendo quebrados e carne sendo dilacerada pela mulher, pela coisa. Eva se encolheu, as lágrimas haviam secado assim como a dor e o sofrimento como se tudo tivesse escorrido dela e agora se resumia a algo oco sem nada a pedir ou oferecer. Everly estava errada e o mundo também.

Deram-lhe um manto, seu antigo vilarejo ficou para trás restando nada além do que uma pilha de corpos. Eva agora era como eles, caminhantes das sombras com seus rostos ocultos pelo capuz, a garota aprendeu a ocultar seus sentimentos também. Em sua primeira missão invadindo terras férteis, ela encontrou uma espada gigante dentro do castelo de um rei fajuto e pegou para si. De algum modo inexplicável, ela conseguia erguer a espada montante como se fosse uma folha seca de uma árvore. Desde então, passou a ceifar vidas com aquela lâmina em campo de batalha. Fez exércitos caírem ao lado de seu novo grupo. A relação que os quatro compartilhavam era sobre o mais puro silêncio reforçando a ausência das palavras. Eva aprendeu com aquelas pessoas a não se importar com a vida alheia, porém em seu âmago sabia que estava chorando por ter que mandar cada uma delas para a morte, poderia até mesmo estar chorando sangue assim como a rainha tola, Everly.

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