O primeiro ensaio estava marcado para a tarde de quinta-feira, na sala multifuncional do segundo andar.
Luz natural invadia pelas janelas largas, mas o clima era denso.
Algo pairava no ar — uma expectativa silenciosa, ou talvez o início de algo que ninguém ainda sabia nomear.
Kaori chegou alguns minutos antes. Carregava uma pasta com anotações, mas o que pesava em suas mãos não era o papel.
— “Pontual,” — disse Sora, já sentado num canto, folheando um caderno de capa preta.
— “Você também,” — ela respondeu, mantendo os olhos no chão por mais tempo que o necessário.
— “Queria te mostrar algo,” — ele disse, levantando e se aproximando devagar. — “Escrevi ontem à noite. É um esboço de cena.”
Kaori pegou o caderno. Leu em silêncio. As palavras pareciam arrancadas de pensamentos que ela mesma evitava encarar. Era como se alguém tivesse aberto uma fresta no que ela guardava trancado.
— “Você... sonha com coisas que nunca viveu?” — ela perguntou, quase num sussurro.
— “O tempo todo,” — ele respondeu.
Leon entrou logo depois, sem bater, sem pressa. O olhar direto pousou neles, parados próximos demais. O caderno ainda nas mãos de Kaori.
— “Começou cedo?” — perguntou, seco.
Kaori se afastou um passo, como se só então tivesse notado a distância entre os corpos.
— “Sora escreveu uma proposta de roteiro,” — disse, tentando soar neutra.
Leon não respondeu. Pegou uma cadeira e se sentou num canto, sem tirar os olhos de Sora.
Minutos depois, o resto do grupo chegou. Sayaka com seu habitual entusiasmo, Ren silencioso ao lado dela, Mei equilibrando copos de chá gelado e Yuto tropeçando em piadas mal colocadas.
— “Parece que a tensão já tá no ar,” — disse Yuto, olhando de Leon para Sora e depois para Kaori. — “E nem começamos a parte dramática ainda.”
— “Acho que a parte dramática começou no momento em que dissemos ‘sim’ pra esse projeto,” — comentou Mei, meio rindo, meio séria.
Sayaka tentou quebrar o clima com suas ideias exageradas. — “A gente podia fazer cada cena como se fosse uma lembrança desconectada... como se os personagens nem soubessem que estão vivendo algo juntos!”
— “Ou sabiam, mas esqueceram,” — completou Ren, baixando os olhos logo depois.
Sora se levantou. — “Tem uma cena que escrevi pensando nisso. Se quiserem, posso ler.”
Kaori assentiu. Leon cruzou os braços.
Sora começou a leitura. Sua voz era calma, quase hipnótica. As palavras descreviam um encontro entre dois desconhecidos que se reconheciam pelo modo como o silêncio os conectava. Havia algo dolorosamente bonito naquilo — e assustadoramente íntimo.
Kaori não piscava. Leon olhava fixamente para a parede atrás de Sora, como se aquilo o protegesse de escutar demais.
— “É... intenso,” — disse Mei, depois de um silêncio desconfortável.
— “É invasivo,” — corrigiu Leon.
Todos se viraram para ele.
— “Quer dizer... pessoal demais pra um projeto escolar,” — completou, sem alterar o tom.
Sora sorriu. — “Às vezes, o pessoal é o que mais conecta.”
— “Nem sempre,” — Leon rebateu. — “Tem coisas que a gente sente e não deve colocar num palco.”
Sayaka olhou de um para o outro. — “Gente... estamos ensaiando ou duelando com palavras aqui?”
Kaori levantou-se. — “Vamos tentar montar a sequência da primeira cena. Mei, você pode ser a narradora?”
— “Claro.”
Ren e Yuto assumiram os personagens secundários. Kaori ficou ao centro. Sora sugeriu que ela interpretasse a personagem que “acorda de um sonho e reconhece alguém no olhar dele, mesmo sem ter o nome”.
Leon se posicionou ao fundo. Observava, mas não se aproximava.
Kaori começou a encenação. Seus gestos eram hesitantes, a voz baixa. Sora se colocou diante dela na cena. Os olhos nos dela. Havia algo ali — tensão, nostalgia ou talvez algo que nem mesmo eles entendiam ainda.
— “Eu... conheço você?” — disse Kaori, recitando.
— “Você me sente,” — respondeu Sora, no papel.
Leon apertou os punhos. A cena continuou. Mas o silêncio entre as falas parecia mais real do que o próprio roteiro.
No fim, Mei anunciou que era o suficiente por hoje. Todos concordaram, aliviados.
— “Bom ensaio,” — disse Sora, recolhendo seu caderno. — “Kaori, posso te mostrar mais ideias depois?”
— “Claro...”
Leon passou por eles ao sair. Rápido. Mas antes de alcançar a porta, disse sem olhar para trás:
— “Memórias falsas são fáceis de encenar. As reais... são as que doem.”
Kaori ficou parada ali. A frase ressoando dentro dela.
Naquela noite, Kaori não foi ao farol. Nem Leon.
Mas em seus quartos, separados por poucas ruas e paredes invisíveis, havia o mesmo pensamento.
Talvez existam lembranças que vêm antes da lembrança. E talvez, em algum lugar entre os ensaios e os silêncios, elas estejam prestes a se revelar.
... “Silêncios que Falam”...
Os dias seguintes aos primeiros ensaios passaram como folhas levadas pelo vento — silenciosos, cheios de significados que ninguém ousava nomear.
Na sala reservada do clube de literatura, o grupo começava a esboçar a encenação das memórias compartilhadas. Papéis rabiscados, falas improvisadas, trilhas sonoras tímidas. Mas, no fundo, cada um carregava consigo uma memória não escrita — um sentimento que transbordava pelas entrelinhas.
Sora e Kaori pareciam cada vez mais sincronizados. Ele compreendia seus silêncios. Ou fingia que compreendia. E ela, confusa, deixava-se ficar ali, entre o mistério e o conforto.
Leon observava de longe. Sempre de longe. Sua voz surgia apenas quando algo saía do tom, mas era nos olhares que ele mais falava. E Kaori sentia.
Naquela tarde, Sora se ofereceu para ensaiar uma cena com Kaori — um momento em que os personagens compartilhavam uma lembrança falsa, mas que doía como se fosse real.
— “Você me olhava como se eu fosse o único no mundo,” — disse ele, com a voz carregada de algo que soava mais verdadeiro do que atuação.
Kaori hesitou na resposta.
Leon deixou cair a caneta que segurava.
Mei fingiu não notar. Yuto passou os dedos pelas cordas do violão, soltando um som dissonante. Sayaka parou de anotar.
Ren apenas observava, como se esperasse que alguém dissesse algo antes que tudo quebrasse.
Kaori tentou continuar.
— “E você... sorria como quem já sabia que ia partir.”
Sora se aproximou. Um passo a mais do que o necessário.
Leon se levantou.
— “Acho que é o bastante por hoje.”
Silêncio.
— “Ainda temos tempo, não temos?” — Sora perguntou, sorrindo, mas havia algo provocativo em seu tom.
Leon não respondeu. Apenas saiu da sala. Kaori o seguiu com os olhos, mas não com os pés.
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Mais tarde, ela o encontrou do lado de fora, perto do campo de atletismo, onde ninguém costumava ir à tarde. O céu estava alaranjado, e as sombras projetavam formas que pareciam memórias inacabadas.
— “Você fugiu,” — disse ela, sem rodeios.
— “Fugir é uma palavra forte.”
— “Mas não errada.”
Leon não olhou para ela. Apenas fitava o céu como se procurasse uma resposta que nunca vinha.
— “Por que você se importa?” — ele perguntou.
— “Porque... não é só atuação. Não é só a apresentação. Tem algo... acontecendo. E você sabe.”
Ele respirou fundo.
— “Sora fala coisas que... eu pensei antes. Coisas que eu senti. Mas ele diz como se fossem dele.”
Kaori se aproximou devagar.
— “E por que isso incomoda tanto?”
— “Porque quando você olha pra ele... eu sinto que estou esquecendo de como você olhava pra mim.”
Foi a primeira vez que ele falou assim. Sem esconder. Sem rodear.
Kaori não respondeu de imediato. O vento levou as palavras que ela pensou em dizer, e só restou o gesto. Um passo. E outro. Até ficar diante dele.
— “Eu não quero esquecer.”
Leon finalmente a encarou. Os olhos dela pareciam conter as mesmas perguntas, os mesmos medos. Mas havia também algo mais: a coragem de quem já tinha perdido uma vez e não queria perder de novo.
Ele levantou a mão devagar e tocou os fios soltos do cabelo dela, como se fosse lembrar aquele momento para sempre. E talvez fosse mesmo.
Não houve beijo. Não ainda. Mas houve silêncio. E naquele silêncio, tudo foi dito.
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Enquanto isso, Sayaka estava na varanda do segundo andar, com os pés pendendo sobre a grade, observando as folhas caírem das árvores como se fossem cartas não enviadas.
Ren se sentou ao lado dela, sem convite.
— “Você está quieta,” — disse ele.
— “É que quando eu falo demais, estrago tudo.”
Ele sorriu.
— “Não com todo mundo.”
Ela virou o rosto.
— “Eu não sei como lidar com você. Com o jeito que você olha e... não diz nada. Às vezes, parece que você vê coisas que nem eu sei que estou sentindo.”
Ren abaixou o olhar, os dedos brincando com o zíper da jaqueta.
— “Talvez porque eu também não saiba lidar. Só observo... pra entender o que não consigo dizer.”
Sayaka riu baixo.
— “Olha só... até que você fala bonito quando quer.”
Ren a olhou de lado. E pela primeira vez, sorriu de um jeito que não era só contido — era tímido. Quase esperançoso.
Naquele fim de tarde, dois silêncios se encontraram. E por um instante, o mundo ao redor pareceu mais simples. Como se bastasse estar ali, dividindo o mesmo ar, a mesma dúvida, a mesma possibilidade.
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Na manhã seguinte, no ensaio, algo mudou. As falas saíam com mais emoção. Os olhares se cruzavam com mais intenção. O grupo, aos poucos, deixava de ser um conjunto de indivíduos e se tornava... uma memória em formação.
Kaori olhou para Leon enquanto falava sua parte.
Ele retribuiu com o mesmo olhar de antes — aquele que dizia: “Eu ainda estou aqui.”
E Sora percebeu.
Mas não disse nada.
Ainda não.
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**\[FIM DO CAPÍTULO ]**
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Atualizado até capítulo 30
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