A chaleira apitou antes que ela percebesse que a tinha ligado. O vapor subia fino, espiralando como se desenhasse o tempo.
Aylin desligou o fogo e serviu a água na xícara. Não usava açúcar. Achava que o amargor do chá combinava com o fim do dia. A xícara trincada — que ela se recusava a trocar — era a mesma de sempre. Branca, com uma borda azul que lembrava o céu de outono.
Sentou-se no chão da sala, onde a luz da varanda mal tocava o tapete. Ela morava num apartamento simples, mas bem arrumado. O silêncio ali era constante. Não o silêncio acolhedor, mas o outro... aquele que grita devagar.
Seu pai ainda estava acordado. Dava para ouvir o som dos dedos dele batendo no teclado, no quarto ao lado.
Ele nunca dormia cedo. E, mesmo quando dormia, parecia estar de pé por dentro. Como se sempre estivesse esperando um relatório. Um número. Um erro.
A porta entre os dois estava fechada. Sempre fechada.
Ela pensou em bater. Só perguntar como ele estava. Mas a ideia se desfez rápido demais.
Ela sabia a resposta.
“Trabalhando.”
Sempre.
Trabalhando.
Luciano Couto costumava acreditar que amar alguém tornava as pessoas fracas.
Por isso, quando Aylin nasceu, ele decidiu ser um pai que protegia... de longe.
Porque amar demais podia quebrar.
E ele não podia se dar ao luxo de ser quebrado.
Ela cresceu vendo-o comandar equipes, resolver crises, encarar criaturas de espécies que ela só conhecia por livros. Mas nunca o viu sorrir com orgulho por causa dela. Nunca ouviu um “vai ficar tudo bem”.
Talvez fosse por isso que ela tentava tanto ser boa no trabalho.
Porque era a única forma que encontrava de existir para ele.
Na manhã seguinte, Aylin chegou cedo à empresa. Os elevadores ainda estavam silenciosos, e os andares, em repouso.
Mas, ao subir, encontrou Lysander já na varanda lateral do prédio — um espaço reservado, com vidro até o teto, onde um jardim flutuava em plataformas suspensas.
Ele estava com uma xícara na mão. E, dessa vez, sem o paletó. Apenas a camisa branca, com as mangas dobradas até os cotovelos. As asas estavam abertas, imóveis, como se também respirassem o ar frio da manhã.
— Chegou cedo — ele disse, sem virar o rosto. A voz era calma.
— Eu gosto do silêncio daqui.
— Silêncio é uma coisa perigosa — ele comentou. — Às vezes, é nele que tudo grita.
Ela se sentou a certa distância. Observou uma das plataformas flutuar lentamente, como uma folha no vento.
— Eu sei — disse apenas.
Lysander bebeu mais um gole, então virou-se ligeiramente para ela.
— Ontem, depois que nos encontramos no corredor… você pensou em mim?
A pergunta veio como uma brisa inesperada.
Ela hesitou. Depois olhou direto nos olhos dele.
— Pensei. Mas não do jeito que talvez você ache.
— Então como?
— Como alguém que… me viu.
Ele não disse nada por alguns segundos.
— E você? — ela devolveu. — Pensou em mim?
Ele sorriu de canto. Um sorriso que não era presunçoso, mas... reconhecido.
— Eu tentei não pensar.
O silêncio caiu de novo. Mas dessa vez... era o outro tipo. O que acolhe. O que permite.
As asas dele moveram-se com lentidão. Uma das plumas brilhou ao sol e refletiu um arco de cor que tocou a borda do banco onde ela estava sentada.
Aylin não disse mais nada. Mas sentiu.
E ali, naquela varanda, enquanto a cidade acordava lá embaixo, um porquê começava a nascer.
Não dito.
Não entendido.
Mas presente.
Como uma rosa quase murcha.
Mas ainda viva.
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Atualizado até capítulo 24
Comments
Professor Ochanomizu
bom
2025-05-12
1