Meu corpo inteiro doía como se eu tivesse sido atropelada por um trem. Cada músculo gritava. Cada centímetro da minha pele latejava. Mas... havia algo mais. A ausência. A cama estava vazia ao meu lado. E aquele cheiro... aquele perfume de lavanda suave misturado com madeira antiga... o quarto da França.
Abri os olhos lentamente, com o coração já acelerado sem nem saber o porquê. Tudo estava em seu lugar. Os livros, a penteadeira, a cortina bege que eu tanto odiava. Nada havia mudado. Como se nada tivesse acontecido.
Mas aconteceu. Eu sabia que aconteceu.
Engoli em seco e minha respiração travou. Meus olhos começaram a se encher de lágrimas.
“Foi tudo um sonho?”
O casamento arranjado.
Luccas.
A dor da perda. O bebê... meu bebê.
Miguel.
A morte da minha irmã Gabriela.
Ariella.
O sangue. A dor. A confusão.
Meu Deus, o que está acontecendo comigo?!
Levei as mãos à cabeça e me encolhi na cama. Eu lembrava de tudo. Não podia ser um sonho. Não foi um pesadelo. Era real. Eu estava lá. Eu senti. Eu vivi. Eu... morri?
A última coisa de que me lembrava com nitidez era estar com Luccas. Nós dois sendo atacados. Depois, o escuro. Um silêncio profundo. Nada.
— Eu tô ficando louca... — murmurei para mim mesma, com a voz embargada.
E então, a porta do quarto se abriu com um rangido que pareceu cortar minha alma em duas.
— Já tá tarde, maninha. Hora de acordar. Temos treinamento hoje e ainda preciso ver o Kevin essa semana. — A voz dela.
A voz da minha irmã.
Meus olhos se arregalaram. O coração parou por um segundo. Eu congelei.
Gabriela... estava ali.
— Você tá bem? — ela perguntou, confusa com meu olhar.
— Eu... tô... — sussurrei, levantando devagar e a abraçando com força. Ela estava viva. Ela estava quente. Ela tinha cheiro de vida. — Acho que tive um pesadelo horrível...
— Eu, hein — ela riu — Se arruma antes que a Abuela venha te buscar, viu?
Ela saiu do quarto como se nada estivesse fora do lugar. Mas tudo estava errado. O mundo estava de cabeça pra baixo e ninguém parecia perceber.
Fui até o banheiro, lavei o rosto e me encarei no espelho.
Era eu... mas não era.
Me vesti no automático e desci. Risadas ecoavam da sala de jantar. Aquela cena era surreal.
Abuela, Bisa, Gabriela, Elena, Pedro, Brenda... Todos ali. Vivos. Felizes.
Beijei a testa de Abuela e de Bisa.
— Pensei que teria que te buscar — disse Abuela com um sorriso.
— Tive uma noite... difícil — murmurei, me sentando.
Tudo parecia tão calmo. Falso. Como um papel de parede cobrindo rachaduras profundas.
Até que Abuela falou:
— A Cosa Nostra está sendo um problema pra nós na Itália.
— Luccas não está sabendo lidar? — perguntei sem pensar.
O silêncio caiu como uma bomba.
Todos me olharam como se eu tivesse cometido um crime.
— Luccas morreu há três anos, Thalita — disse Brenda com frieza. — E você nem se importa mais com nada de lá... por que essa preocupação agora?
— Sei lá... — murmurei, desviando o olhar, sentindo meu peito se apertar, como se algo estivesse sendo esmagado dentro de mim.
A Bisa me olhou. Ela sabia. Ela sempre sabia.
O dia passou arrastado. Fiz tudo no automático: treinei, cuidei dos Masked, participei das reuniões da Amarante Modes. Mas dentro de mim, um caos fervilhava.
Quando cheguei na casa da Abuela, fui direto pro banho. Me vesti e fui pro único lugar que ainda me dava paz: a estufa.
Me sentei ali, observando as flores, tentando encontrar sentido em tudo.
E então, a voz da Bisa.
— Está tudo bem?
— Não — respondi com sinceridade, encarando seus olhos cheios de sabedoria. — Não parece real. Nada disso parece real...
— Você sabe a resposta — ela disse, sem me olhar, concentrada nas flores.
— Do que a senhora tá falando?
Ela respirou fundo.
— Sua mente, Thalita, criou um mundo... um escudo pra não enfrentar a realidade.
Meu sangue gelou.
— A senhora tá dizendo que eu... morri?
— Não, irmãzinha — a voz agora era de Gabriela, surgindo do meio das plantas.
Virei para ela como se tivesse visto um fantasma.
— Gabi...
— Sua mente criou um refúgio, com tudo o que você mais ama.
— Então... o que aconteceu?
— Você está em coma. E agora... você precisa decidir: volta, ou vive nesse escudo pra sempre.
Coma?
Eu estou em coma?
— E se... e se eu decidir ficar?
— Vai ter que enfrentar o passado — disse Gabriela, firme. — Vai ter que lutar.
De repente, ouvi vozes distantes. Zumbidos. Pessoas me chamando. Algo me puxava. Lá de fora. Da vida.
— Eu quero voltar! — gritei, correndo até Gabriela. — Eu tenho que voltar!
— Você não vai conseguir... ainda. — Ela me segurou pelos ombros. — Eu te amo, Thalita. Mas você tem que esperar. Tem que estar pronta.
— Eu não quero saber de tempo! — gritei, as lágrimas descendo sem controle — Eu só quero... voltar. Por favor...
— Você quer voltar pra sofrer de novo? — ela sussurrou.
— Gabi... — solucei — O que tá acontecendo comigo?
— Quando chegar a hora, eu venho te buscar — disse, antes de desaparecer diante dos meus olhos.
— GABRIELA!! — gritei desesperada, me virando em todas as direções.
Silêncio.
Corri pra dentro da casa.
Estava vazia.
A porta da frente... trancada. Inútil.
Senti o pânico tomar conta de mim. Caí no chão.
Chorei como nunca chorei antes.
Desespero. Solidão. Medo.
E então, o som.
Um choro. Um choro de bebê.
Corri até a estufa. O som vinha de lá.
Entre as flores... uma rosa.
O choro vinha dela.
Mas uma a uma, as rosas começaram a murchar.
Eu estava sozinha.
Sozinha...
O que está acontecendo comigo?
Minhas mãos tremiam.
Eu tentava tocar a rosa de onde o choro saía, mas assim que meus dedos se aproximaram, as pétalas desmancharam como cinzas, sumindo no ar. O choro parou.
Silêncio.
Um silêncio pesado, sufocante. Como se o mundo tivesse prendido a respiração.
— NÃO! — gritei, me ajoelhando ali mesmo, no chão frio da estufa. — VOLTA! POR FAVOR, VOLTA!
Mas não havia mais som.
Não havia mais cor.
As flores murchavam diante dos meus olhos, como se a vida estivesse escorrendo por entre meus dedos. Tudo morria.
Minhas unhas arranhavam o chão em desespero.
— ME TIRA DAQUI! ME TIRA DAQUI! — eu berrava. Minha garganta ardia, mas eu não conseguia parar.
Corri para fora da estufa, tropeçando nas próprias pernas, as lágrimas embaralhando minha visão.
A casa estava escura.
Todas as luzes apagadas.
O céu... o céu não tinha sol. Era como se o tempo tivesse sido arrancado do mundo.
— Gabriela! — chamei, ofegante. — Bisa! ALGUÉM!
Corri pelos corredores, abrindo portas, puxando cortinas, rasgando o ar com gritos.
Ninguém.
Nada.
Como se eu fosse a única alma presa num corpo que se recusa a acordar.
As paredes começaram a fechar.
Juro por Deus. Eu vi. Elas se moviam.
O corredor estreitava. O teto baixava.
— NÃO, NÃO FAZ ISSO! — bati nas paredes. — EU TÔ VIVA! EU TÔ AQUI!
Eu corri.
Mas o chão parecia escorregadio, infinito, como um pesadelo do qual não se acorda.
Minhas pernas falharam.
Caí.
E o pior som veio.
Uma risada.
Baixa.
Seca.
Cruel.
— Quem tá aí?! — perguntei, minha voz falhando. — Me responde! QUEM É VOCÊ?!
A risada continuou.
Então, um sussurro frio tão perto que meu corpo arrepiou inteiro:
— Você criou isso. E agora… não consegue sair.
— Não... não fui eu! — neguei, tapando os ouvidos, me encolhendo no chão. — Eu só quero... voltar... eu só quero minha irmã... meu bebê...
E então vi.
No espelho da parede.
Meu reflexo não era meu.
Meus olhos estavam negros. Vazios. Sem luz.
Meu rosto... sujo de sangue.
— Isso não é real! — gritei, socando o espelho com as mãos nuas.
O vidro estilhaçou, cortando minha pele. Mas não doeu.
Nada doía.
E é por isso que eu tive ainda mais medo.
Porque se nem a dor era real…
Então talvez eu já estivesse morta.
Fiquei ali, no chão gelado, o sangue falso escorrendo, os cacos ao meu redor, o eco da minha própria loucura preenchendo o vazio.
Minhas mãos tremiam, meu corpo balançava para frente e para trás como uma criança perdida no escuro.
— Me acorda... por favor... alguém me acorda... — sussurrei, até minha voz sumir.
— Eu não quero mais ficar aqui.
— Eu tenho medo.
— Eu tô sozinha.
— Eu tô sozinha...
E mais uma vez, o silêncio respondeu.
E eu chorei.
Como se o choro fosse a única coisa real que ainda me restava.
Senti um cheiro familiar.
Não doce como o da estufa, nem pesado como o vazio da casa escura.
Era o cheiro do meu quarto. O verdadeiro.
Lavanda com algo amadeirado.
Quente.
Real.
Meus olhos ainda estavam fechados, mas eu sentia a mudança.
O chão sumiu.
Eu já não estava no chão.
Agora era macio... um colchão.
O lençol encostava na minha pele como um abraço antigo.
O ar era diferente. Mais denso. Mais... vivo.
Minha respiração acelerou.
— Calma... calma, Thalita... — sussurrei para mim mesma, mesmo sem entender de onde veio a coragem para falar.
Minha voz parecia engasgada, seca, como se há dias eu não dissesse nada.
Meu corpo doía. Cada osso. Cada músculo.
Mas era uma dor real.
Uma dor que me dizia: você ainda está viva.
Abri os olhos.
Luz fraca.
Teto branco.
As cortinas do meu quarto se movendo devagar com o vento que passava pela janela entreaberta.
Meu coração disparou.
Virei a cabeça devagar... e ali estava.
Meu quarto.
Tudo no lugar.
A prateleira com meus livros organizados por cor.
A poltrona com o xale que a Bisa me deu.
A escrivaninha com os papéis espalhados.
Minha blusa jogada sobre a cadeira.
A caneca de chá ainda na cabeceira.
Tudo estava exatamente como eu lembrava.
Mas...
Havia algo estranho.
O tempo parecia parado, como se ninguém tivesse entrado ali em dias.
Pisquei várias vezes. Minhas mãos apertaram os lençóis como se eu precisasse confirmar, sentir, ter certeza.
— Isso não é real... — falei com dificuldade.
Minha garganta raspava, como se eu tivesse gritado por horas.
Talvez eu tivesse.
Minhas pernas tentaram se mover...
E um arrepio subiu pela minha espinha.
Não era medo.
Era um pressentimento.
Algo estava errado.
Fechei os olhos. Respirei fundo.
E como uma maré subindo pela praia...
as memórias começaram a se mover.
Eu não via imagens.
Mas sentia.
Sentia o peso no peito. A angústia. O desespero.
Algo dentro de mim queria gritar.
Queria implodir.
Eu não lembrava ainda... mas meu corpo sabia.
Algo muito, muito errado tinha acontecido.
Tentei me sentar. Meus braços tremeram.
E quando finalmente consegui, olhei ao redor, ofegante.
— Gabriela...? — chamei, num fio de voz.
Mas não houve resposta.
Somente o som do vento...
E um relógio que não marcava as horas.
Como se o tempo ainda não tivesse me aceitado de volta.
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Atualizado até capítulo 33
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