Acordei com o cheiro de terra molhada misturado com alguma coisa doce. Bolo? Bolo de fubá? Por um segundo, pensei que tinha voltado no tempo. Mas aí ouvi a voz da Dona Iolanda ecoando pela casa.
— Se essa casa não cheira mais a velório, é graças a mim! — ela resmungava, batendo a forma na pia como se estivesse num ritual de exorcismo. — E se alguém reclamar, boto erva-cidreira no arroz também, só de deboche.
Entrei na cozinha parecendo uma figurante de filme pós-apocalíptico. Coque frouxo, olheiras do tamanho de um mapa e a alma pendurada no ombro.
— Bom dia, dona Iolanda...
— Bom dia nada, moça. Olha essa sua cara! Tá precisando de reforço urgente. Senta aí. Hoje tem chocolate quente com canela. E se não funcionar, passo pro licor.
Sentei. Nem discuti. O aroma do chocolate subiu até o cérebro como um afago. No canto da cozinha, Naldo dançava com uma colher de pau e um fone no ouvido, cantando “Evidências” como se estivesse numa final de reality show.
— Você precisa de terapia — murmurei.
— Eu preciso é de férias e aumento — respondeu ele, girando no próprio eixo com a graça de uma bailarina bêbada.
Isabelle apareceu minutos depois, arrastando os pés pela escada com seu pijama de unicórnio e o coelhinho de pelúcia abraçado com força. Os cabelos dela estavam num estado de caos tão genuíno que dariam orgulho a qualquer criança de seis anos.
— Bom dia — ela disse, com a voz baixa.
— Minha princesa de nuvem chegou! — gritou Dona Iolanda, pegando um copo rosa brilhante. — Hoje tem marshmallow, chantilly e, se você quiser, boto até estrelinha comestível!
Isabelle sorriu.
E foi ali, naquela curva pequena do sorriso dela, que eu senti o coração amolecer. Só um pouco. Mas foi o suficiente.
Mais tarde, fui para o jardim tentar entender os papéis da guarda provisória. Estava tudo ali, impresso em letras frias, como se ser responsável por uma vida fosse só uma questão de carimbo.
Miro podava hortênsias com a precisão de um cirurgião. Me aproximei, tentando puxar assunto.
— Você trabalha sempre tão... em silêncio?
Ele nem parou. Apenas respondeu:
— Silêncio não mente, dona Aria.
Fiquei olhando pra ele por alguns segundos, esperando mais alguma coisa. Um sorriso? Uma piscadela? Nada. Miro voltou ao serviço como se tivesse acabado de recitar um provérbio milenar.
Definitivamente, o jardineiro não era só jardineiro.
No meio da tarde, meu pai apareceu com aquela cara de sempre: como se o mundo inteiro fosse uma dor de cabeça sem fim.
— Amanhã você vem comigo ao cartório. Precisamos formalizar a guarda da menina.
— Certo... — cruzei os braços, encarando-o. — Mas posso saber por que você e Vítor Bellucci vivem trancados no escritório, sussurrando como vilões de novela?
Ele parou por um segundo. Me encarou.
— O que você ouviu?
— O suficiente pra saber que tem sujeira debaixo desse tapete. E eu tô cansada de surpresas.
Ele suspirou fundo, virou as costas e saiu.
Ótimo. Mais mistério. Como se eu já não tivesse o bastante.
O final do dia chegou com Isabelle vendo desenho no sofá, deitada sobre uma almofada enorme. Me sentei ao lado dela, tentando aproveitar alguns minutos de normalidade.
Naldo passou pela sala usando uma tiara de princesa e carregando uma bandeja.
— Isso é algum novo protocolo? — perguntei, franzindo a testa.
— Sua alteza Isabelle exigiu cerimônia para o lanche. E eu, como fiel servo da monarquia unicórnia, atendi.
Isabelle gargalhou. E eu? Eu sorri de verdade. Pela primeira vez em dias.
Mas a paz não dura muito por aqui.
Meu celular vibrou. Número desconhecido.
Atendi, hesitante.
— Aria Duarte?
— Sim. Quem fala?
A voz que veio do outro lado era grave. Segura. E tão familiar que me deu calafrios.
— Leon Bellucci. Precisamos conversar.
E foi assim que o passado resolveu dar sinal de vida.
De novo.
...ALGUMAS HORAS DEPOIS......
O cartório de Sierra parecia uma cápsula do tempo: pastas de couro envelhecido, fichários pesados, carimbos antigos, e uma secretária com coque, com a cara de quem julgava tudo e todos.
Eu segurei firme a mão de Isabelle enquanto o juiz de paz explicava os detalhes burocráticos com a animação de uma samambaia murcha.
— Assinando aqui, você se torna responsável legal até o julgamento da guarda definitiva — ele disse, empurrando os papéis com um suspiro.
Assinei, e senti o peso aumentar, um peso que não era só dos papéis, mas algo bem mais pesado, dentro de mim.
Lá fora, o sol brilhava, mas o dia parecia em tons de cinza.
De volta à casa, subi para o quarto de Lúcia.
Era como abrir um baú de lembranças que eu preferia deixar fechado. O perfume ainda estava adormecido nas cortinas, o diário com a letra pequena e redonda, e uma foto emoldurada: nós duas, ainda adolescentes, sorrindo, sem as feridas de agora.
Fechei os olhos e respirei fundo, tentando segurar a saudade. E foi quando ouvi um barulho vindo da janela.
Quando a abri, vi Miro no jardim, parado, com a testa franzida, olhando para a casa.
Ele me percebeu e, com um tom enigmático, disse:
— Os ventos de Sierra andam mexendo com coisas antigas.
E seguiu, podando as roseiras como se nada tivesse acontecido.
Na sala, Dona Iolanda estava preparando pão de queijo, Naldo cantava “Lua de Cristal” e Isabelle, com a energia de sempre, estava fazendo um trono de almofadas no tapete.
— Eu sou a rainha da casa agora! — gritou ela, com risos e muita empolgação.
— Então me passa a chave do cofre — respondeu Naldo, jogando uma almofada de volta.
O som da campainha cortou aquele momento de felicidade.
Eu congelei. Sabia que não era qualquer um.
Abri a porta.
Era um motoboy, de terno, gravata e óculos escuros.
— Entrega para Aria Duarte — ele disse, estendendo um envelope preto.
— Isso é uma intimação? — perguntei, desconfiada.
— Não. É um convite.
— De quê?
— De alguém que está muito curioso pra saber por que você voltou.
Antes que eu pudesse perguntar mais, ele já estava na moto, indo embora.
Eu abri o envelope, meu coração batendo mais forte.
Dentro, um papel elegante, com caligrafia firme:
“Encontro marcado. Hoje. 20h. No Solar Bellucci.”
Leon.
O nome ficou rondando minha cabeça o resto do dia.
Leon Bellucci.
O homem que eu não via há anos.
O homem que eu nunca consegui esquecer.
O homem que agora queria me ver... no Solar Bellucci — a mansão mais luxuosa e misteriosa da cidade.
Respirei fundo.
20h. Solar Bellucci.
Meu celular vibrou.
"Você vai. Não pode deixar de ir."
Era uma mensagem sem nome, apenas com um número desconhecido.
E eu sabia, no fundo, que não havia como fugir.
Olhei uma última vez para Isabelle, que estava no canto da sala, brincando com os brinquedos, e então tomei minha decisão.
Continua...
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Atualizado até capítulo 21
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