...EM ELDERMERE......
— Pelo amor de Deus, eu só queria tomar um café quente uma vez na vida — resmungo, encarando a xícara fria pela terceira vez naquela manhã.
— Adivinha quem processou o ex por pegar o cachorro na partilha de bens? — grita Selena do sofá, de pantufa rosa e um donut na mão.
— Letícia. A da yoga? A que dizia que "a paz interior vale mais que bens materiais"? — pergunto sem tirar os olhos do notebook.
— Essa mesma! — ela responde rindo. — Paz interior o cacete, o pug chamado Buda ficou com o ex e ela surtou. Fez BO, processo e tudo.
Sorrio de canto. O caos da Selena era o único tipo de loucura que ainda me fazia sentir no controle.
O interfone toca.
— É um moço com cara de quem veio cobrar imposto ou trazer má notícia — diz Selena olhando na câmera. — Quer que eu diga que você morreu?
— Abre. Já sei o que é.
Dois minutos depois, tô segurando um envelope branco, pesado. Timbrado. Oficial.
— Isso é do inferno ou da Justiça? — pergunta Selena, desconfiada.
— Quase a mesma coisa — respondo enquanto rasgo o lacre.
Lá dentro, a sentença:
"Aria Duarte: convocada como responsável temporária por Isabelle Duarte, menor de idade, após falecimento da genitora, Lúcia Duarte."
Silêncio.
O donut cai da mão da Selena.
— É sério isso?
Engulo em seco. Isabelle. A filha da minha irmã. A irmã que eu jurei esquecer.
— Eu... vou ter que voltar.
— Pra onde?
— Sierra — respondo com amargura.
— Aquela cidade onde a padaria vende pinga disfarçada de vitamina?
— Essa mesma.
Selena tenta animar:
— Olha pelo lado bom, talvez o padre gato ainda esteja solteiro.
— Ele era gay, Sel.
— Melhor ainda, vai ver ele abriu um bar de drag queens.
Duas horas depois, tô de salto vermelho, mala na sala, e Selena me abraçando como se fosse a última vez.
— Quer que eu vá com você?
— Não agora... mas fica de plantão. Talvez eu te ligue pedindo socorro. Ou um álibi.
— Só não me faz enterrar corpo em lugar com formiga vermelha. Sou alérgica.
Ela sorri. Depois fica séria.
— Você vai conseguir. Você é forte, Aria. E teimosa. Ninguém sobrevive em Sierra melhor que uma teimosa de salto vermelho.
A estrada até Sierra parece sussurrar lembranças que eu tentei enterrar.
Chegando lá, a antiga casa da Lúcia tá trancada. Corrente. Bilhete preso na porta:
"Imóvel sob inventário. Acesso restrito até liberação judicial."
— Ótimo. Começamos bem.
Hotel? Lotado. Pousada? Em reforma. Conhecidos? Curiosos demais.
— A única opção que me resta... — murmuro olhando o celular — é meu pai.
A porta abre devagar. César Duarte aparece. O mesmo rosto frio de sempre.
— Aria.
— Preciso de um lugar pra ficar uns dias.
Ele me encara. Depois abre mais a porta.
— Entra.
A casa tá igual. Fria. Silenciosa. Cheiro de café velho.
— E a Isabelle? — pergunta ele já indo pro escritório.
— Chega amanhã! Tô resolvendo os papéis hoje!
Antes de subir, escuto vozes no escritório.
A porta tá entreaberta.
— Isso não pode vazar, Vítor. Se esse dossiê cair nas mãos erradas, estamos ferrados.
Meu coração acelera.
O pai do Leon?
Pronto. Tô de volta em Sierra... e a merda já começou.
...NO DIA SEGUINTE......
A casa de César Duarte tava com aquele mesmo silêncio de sempre. Frio, pesado. Mas agora tinha uma coisa diferente: movimento. Pela primeira vez em anos, o velho casarão tava sendo arejado. As cortinas lavadas dançavam com o vento e o cheiro de pão fresco tomava o corredor inteiro.
— Isso aqui tá parecendo até lar de gente viva — Miro o jardineiro resmunga, ajeitando uns vasos na varanda.
Lá dentro, Dona Iolanda tava inspecionando dois ajudantes de cozinha com a pose de uma general em missão especial.
— Quero tudo limpo e organizado. Hoje tem criança chegando. E criança repara nas coisas.
Eu tava só observando, calada, sentada à mesa com uma xícara de chá que nem lembro de ter pedido. O nervosismo batia forte. Eu fingia calma, mas tava falhando miseravelmente.
César apareceu na porta, ajeitando a manga da camisa.
— O carro da assistência social chega às dez.
— Eu sei — respondi, sem olhar pra ele.
— A menina vai dormir no quarto da sua mãe. É o único que está arrumado.
Quase ri.
— Irônico, né? Depois de tudo, ela dorme no lugar da avó que nunca conheceu.
— O destino é irônico mesmo — ele murmurou, antes de sair.
O carro parou na frente da casa no horário exato. Corri até o portão, e lá estava ela: Isabelle. Pequena, com dois coques tortos, um vestidinho lilás de estrelinhas, mochila rosa nas costas e um coelho de pelúcia que já tinha vivido dias melhores.
Ao lado, a assistente social, uma mulher simpática, com pressa.
— Aria Duarte?
— Sim.
— Essa é a Isabelle. A documentação tá toda no envelope. Ela tá bem, mas... ainda em choque.
Me ajoelhei na frente dela.
— Oi, Isabelle. Eu sou a Aria. A gente vai ficar juntas agora, tá bom?
Ela me olhou por um segundo e depois escondeu o rosto no coelho.
Meu peito apertou.
— Quer entrar? Tem bolo de cenoura com cobertura de chocolate...
Nada. Mas ela deu um passinho tímido pra frente.
Dona Iolanda a governanta apareceu na porta, pano de prato no ombro, com um sorriso quentinho.
— Pode vir, mocinha. Aqui tem bolo, suco, e se você for bem legal comigo... posso até mostrar onde escondi os marshmallows.
Isabelle piscou pra ela. Depois pra mim. E entrou.
No fim da tarde, alimentada e com as bochechas coradas, Isabelle andava pela casa de mãos dadas comigo.
— Esse quarto é seu — falei, abrindo a porta com flores de papel na parede e uma colcha nova na cama.
— Tem cheiro de flor — ela disse, cheirando o travesseiro.
— A Dona Iolanda colocou lavanda.
Ela sorriu pequeno. Depois olhou em volta.
— Minha mãe vai me buscar aqui?
Congelou tudo dentro de mim.
— Não, Isa... lembra o que a moça explicou? A mamãe foi morar no céu.
Ela abaixou os olhos e abraçou o coelho.
— Mas o céu é longe...
Me aproximei devagar e abracei ela.
— Eu sei. Mas você não tá sozinha. Eu tô aqui.
Mais tarde, com Isabelle dormindo agarrada no coelho, desci pra pegar um chá.
Passei pelo corredor... silêncio.
Ao virar no fim do corredor, escutei um sussurro vindo da cozinha.
— Achei que ela não fosse aceitar... — disse uma voz feminina, abafada.
Me escondi na sombra da parede. Reconheci aquela voz. Era a governanta.
— E se a menina descobrir? — perguntou um dos ajudantes, baixo.
— A Aria não pode saber o que houve de verdade com a irmã dela. Ainda não.
Minhas mãos gelaram. O corpo travou.
Do que eles estão falando?
O que aconteceu com a minha irmã... que eu não sei?
Continua...
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Atualizado até capítulo 21
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