Capítulo 3: O Que É De Mim?

[ Cannes Centre, Cannes - França ]

Camila Vasquez | 00:42 AM, Quatro Dias Depois

O problema de reencontrar fantasmas é que eles nunca voltam sozinhos.

Desde aquele dia na livraria, o mundo ganhou um peso diferente. Como se tudo estivesse um pouco fora de lugar, como se o ar carregasse lembranças demais e o silêncio falasse alto demais. Eu voltei pra casa com o livro nas mãos, mas era outra coisa que eu carregava de verdade: ele.

Nicolas.

E isso me irritava. Me envergonhava. Me feria.

Passei o dia tentando ignorar. Fiz café, abri o computador, até limpei os armários da cozinha — e eu detesto limpeza. Mas nenhuma distração foi suficiente pra calar o que gritava dentro de mim. Era como ter voltado dois anos no tempo, como se o peito tivesse sido aberto e eu estivesse sendo forçada a rever todas as partes de mim que ele deixou em ruínas.

Deitei no sofá com o casaco ainda no corpo, as luzes apagadas e o som da cidade ao longe. Cannes não dormia, mas eu… eu já não sabia mais o que era descanso.

Peguei o exemplar de O Morro dos Ventos Uivantes do canto da mesa. Abri ao acaso, como quem pede resposta ao universo.

"Se ele morrer, o que é de você?" — dizia a frase marcada de alguém, em uma letra que não era minha.

"O que é de mim?"

Fechei o livro de repente. Como se aquilo fosse pessoal demais.

Suspirei, cansada.

O que é de mim, mesmo?

Uma mulher que saiu do Brasil pra tentar respirar em outro país, que escolheu Cannes por impulso e silêncio. Que nunca gostou de despedidas, mas sempre foi deixada. Que aprendeu a se vestir de força, mas ainda tem medo de dormir e sonhar com o que perdeu.

Levantei e fui até a janela.

A cidade era bonita. Sempre foi. Mas beleza não preenche buracos. Não consola feridas.

E eu estava cheia de buracos.

Tirei o celular da gaveta. Abri o Instagram. Digitei o nome dele.

Nicolas Stark.

Perfil fechado. A mesma foto de anos atrás. A mesma ausência gritante.

Minha garganta fechou. Me odiei por isso. Por ainda me importar. Por ainda me perguntar se ele também olhava o meu nome nas redes, se pensava em mim nas noites frias, se lembrava do cheiro do meu cabelo depois da chuva.

Idiota.

Joguei o celular no sofá.

Camila: Chega. — sussurrei.

Mas a verdade é que não chega. Não quando você ainda ama quem te destruiu. Não quando o amor virou um veneno lento, que você engole todo dia pra provar que já está imune — mas não está.

Sentei no chão do banheiro. O azulejo estava gelado. Eu também.

Fechei os olhos. Chorei sem escândalo, como quem já se acostumou.

E no meio da dor, uma única certeza:

Eu precisava sair daqui.

Nem que fosse por um fim de semana.

Nem que fosse só pra lembrar como era respirar sem o peso do passado.

Porque se eu ficasse…

Eu acabaria voltando pra ele.

E isso, eu não sobreviveria de novo.

Ainda sentada no chão frio do banheiro, eu me perguntava se algum dia aquilo tudo passaria. Se o amor realmente se curava com o tempo — ou se o tempo só ensinava a esconder melhor. Minha cabeça latejava, e o silêncio da madrugada parecia zombar de mim.

Até que o celular vibrou.

Olhei de longe, com desconfiança. Estava no canto do sofá, jogado como eu mesma tinha ficado nos últimos dias.

Levantei devagar, enxugando o rosto com a manga da blusa. Quando peguei o aparelho, o nome que apareceu me arrancou um pequeno sorriso, desses que surgem antes mesmo de você entender por quê.

"Júlia — BRASIL."

Não falávamos havia meses. A vida se meteu no meio. O fuso horário também. Mas ela era uma daquelas amigas que o tempo não apagava, só silenciava por um tempo. E eu precisava dela agora, mesmo sem saber.

Atendi.

— Alô?

— Cacete, mulher, até que enfim! — a voz dela explodiu no meu ouvido, e foi como voltar pra casa.

— Ai, Ju… — fechei os olhos, me recostando no sofá. — Que saudade de você.

— Saudade o cacete, você sumiu! Vai me dizer que tá rica aí em Cannes e esqueceu das pobres mortais brasileiras?

Soltei uma risada abafada. Primeira vez em dias.

— Rica? Eu? Mal consigo pagar o aluguel. Estou sobrevivendo de café e sarcasmo.

— Aí sim, essa é a Camila que eu conheço.

Ficamos em silêncio por um segundo. O tipo de silêncio que só existe entre amigas de verdade.

— Tá tudo bem? — ela perguntou enfim, com a voz mais baixa. — Você tá com aquela voz… você sabe.

— Que voz?

— De quem tá segurando o mundo com uma mão só. E com a outra, tentando não mandar mensagem pro ex.

Fiquei quieta. A respiração pesou. Ela me conhecia demais.

— Eu vi ele, Ju. Aqui. Em Cannes.

— Quê? — ela quase gritou. — O Nicolas?

Assenti, mesmo que ela não pudesse ver.

— Na livraria. Estava com a namorada.

— Puta merda. — ela sussurrou. — E você? Como ficou?

Olhei em volta. O caos da minha sala. O meu rosto inchado. A minha alma em frangalhos.

— Destruída. Mas tentando parecer intacta.

Ela não riu. Nem minimizou. Só ficou ali.

— Camila… volta. Vem pra cá uns dias. Pra São Paulo. Dorme no meu sofá, come miojo comigo e me ajuda a reclamar da vida.

Sorri. Pela segunda vez na noite.

— Ju, você é a única pessoa que acha que miojo pode curar um coração quebrado.

— Não pode. Mas cura a fome, e às vezes é tudo que a gente consegue fazer.

Fechei os olhos. Queria estar com ela. Queria estar em qualquer lugar onde o passado não estivesse me olhando nos olhos.

— Talvez eu vá.

— Promete?

— Não prometo. Mas… penso com carinho.

— Pensa com urgência, tá? E se cuida. Eu te amo, sua maluca.

— Também te amo, Ju.

Desliguei com a sensação de que, talvez, eu ainda tivesse chão pra me levantar. Mesmo que aos poucos. Mesmo que tropeçando.

E naquela noite, pela primeira vez, eu consegui dormir.

Com saudade. Mas em paz.

---

[ Lá Californie, Cannes - França ]

Nicolas Miller | 02:03 AM

A luz do abajur era suave, mas suficiente para me manter acordado. Isabela dormia ao meu lado, o corpo envolto no lençol de linho branco, a respiração lenta e ritmada. A cama era grande demais para dois corpos tão distantes, mesmo juntos. E o silêncio... o silêncio era ensurdecedor.

Me sentei na beirada, apoiando os cotovelos nos joelhos. Os pensamentos giravam em círculos, como um disco arranhado que insiste em repetir a mesma nota maldita.

Camila.

Aquela livraria maldita.

O instante em que meus olhos cruzaram os dela.

A porra da dor no fundo do olhar dela.

Eu não estava preparado. Não pra vê-la daquele jeito. Não pra vê-la de novo.

Ela parecia mais magra. O cabelo um pouco mais escuro. Mas ainda era ela. A mesma que me fazia perder o equilíbrio só de olhar. A mesma que eu deixei escapar por orgulho, por medo, por covardia.

Senti Isabela se mexer atrás de mim.

Isabela: Você não dorme? — a voz dela veio baixa, ainda embargada de sono.

Respirei fundo, tentando fingir naturalidade.

Nicolas: Estou sem sono. Só isso.

Isabela: Quer que eu te faça um chá?

Nicolas: Não precisa.

Ela se levantou mesmo assim, nua, e caminhou até a cozinha americana do nosso loft. O som do bule no fogão, a luz quente do canto, tudo parecia tão… comum. Mas nada ali me pertencia de verdade.

O apartamento era bonito, decorado com bom gosto, com vista para o mar de Cannes. Mas não era lar. Não desde que Camila foi embora.

Isabela voltou minutos depois com duas xícaras. Sentou ao meu lado e entregou a minha. Chá de camomila. Quase sorri. Camila odiava camomila. Dizia que tinha gosto de "ervinha de jardim deprimida".

Isabela: Você tá estranho hoje. — ela disse, olhando direto pra mim. — Desde que saímos da livraria.

Trinquei o maxilar.

Nicolas: Vi alguém. Alguém do passado.

Ela franziu o cenho, mas não perguntou quem. Talvez sentisse. Talvez não quisesse saber. Às vezes o silêncio era mais seguro do que a verdade.

Isabela: Quer conversar sobre isso?

Neguei com a cabeça. Olhei pela janela. O mar estava calmo. Injustamente calmo.

Nicolas: Não agora.

Ela encostou a cabeça no meu ombro. E eu deixei. Porque era mais fácil do que levantar e encarar o que eu realmente queria.

No fundo, eu sabia: a presença de Camila em Cannes ia me despedaçar. Ou me acordar. Talvez os dois.

Só não sabia ainda de qual lado da corda eu estava pendurado.

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